Incapaz

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Lauren:

Outra noite cumprindo um plantão duro e cansativo no hospital. Eu gostaria de saber onde estava com a cabeça no dia que decidi ser oncologista. Eu poderia ter sido uma advogada, ou quem sabe, uma arquiteta. Mas não, aqui estou, mais uma vez trancada neste hospital de Câncer e pior: rodeada por crianças que não merecem nem um pouco estar aqui. Crianças que tiveram a vida interrompida por uma doença cruel. Olho a minha volta e as vejo, todas lutando para poder viver. Umas estão aqui desde o dia do nascimento, outras chegaram há pouco tempo... tão novos mas já com uma grande batalha pela frente. Eu reclamo disso, sim, mas é bom saber que existem pessoas que dependem de mim. Por mais que seja incontavelmente cansativo e as vezes até dolorido, eu faço isso com prazer. Acho que estou e contradizendo.

Eles me chamam de doutora, não permito com que me chamem de tia ou coisas do tipo. Eu tento ser dura com todos, pois estou ciente de que se me apegar demais, vou sofrer com uma provável perda. Essa foi a forma que achei para me proteger, é um tipo de escudo. A realidade pode ser dolorosa demais, acho melhor eu não arriscar. No primeiro ano que exerci minha profissão como oncologista, eu me apeguei a uma menina de oito anos, ela tinha câncer no pulmão. Eu a abraçava, beijava e a tratava como uma pequena princesa, e então, de um dia para o outro ela piorou e morreu no primeiro dia de dezembro. Desde então, eu fui forçada a mudar meu jeito. Seu nome era Reese. A menina era dona dos olhos castanhos mais lindos que eu já havia visto, e se foi.

Este é o meu terceiro ano aqui. Três anos lidando com essas pequenas e frágeis crianças que por incrível que pareça, são felizes! É difícil ver uma delas com o olhar triste ou cabisbaixa, isso só acontece quando estão sentindo alguma dor ou quando sabem que é o fim. Vemos tristeza nos familiares, nas pessoas que sabem o que pode acontecer a qualquer momento, as que são mis realistas ou até mesmo meio negativas, com a esperança por um fio, nas pessoas que as amam incondicionalmente. [...] Eu deveria estar acostumada, já que pelo menos ou duas pessoas morrem por mês neste hospital... mas confesso que as vezes, me entrego escondida às lágrimas.

Me sinto extasiada com frequência. Hoje é um dos dias. Quando a gente se sente para baixo, sem vontade, sem ânimo.

- Doutora. - Escutei a voz tão baixa e suave de um menino - Meu nariz... acho que está... - Me virei e vi Aiden, um garoto magro e branquinho, com sangue escorrendo em seu rosto. Corri até ele. - Acho que está sangrando um pouco.

- Não levante a cabeça, Aiden! O sangramento já vai passar. - Assegurei. Peguei uma caixa com lenços no armário de primeiro socorros e ajudei o garotinho a se limpar. Sangramentos pelo nariz não são muito normais, mas não é algo para se preocupar tanto.

Me certifiquei de que o garoto estava realmente bem e o deitei na maca. Quando eu ia me virar:

- Doutora? - Ele sussurrou.

- Sim, Aiden.

- Meu aniversário de seis anos está quase chegando.

- Mesmo? Acho que você está ficando velho! - Ele sorriu.

- Eu ainda não estou muito velho, eu quero viver até ter uns cem anos de idade! ...A senhora acha que eu vou conseguir comemorar meus cem anos um dia? - Perguntou. Eu suspirei tentando procurar alguma resposta. Isso me machuca por dentro.

- Tenho certeza, Aiden... Agora feche seus olhos e durma, está bem?

- Boa noite, doutora Lauren.

- Boa noite, Aiden.

- Espere! - Ele voltou a chamar antes que eu saísse da sala, eu me virei e encontrei o menino sentado. Ele bocejou. - Se eu te convidar para o meu aniversário de seis anos, a senhora iria? Vai ter uma porção de balões azuis e vermelhos!

- Talvez, Aiden.

- Vai ser em Julho, quantos dias faltam? - Seu jeito ingênuo me fez sorrir.

- Faltam alguns dias ainda. Mas se você ir dormir agora, vai faltar menos um.

- Então eu vou dormir. Boa noite, doutora. - E fechou seus olhos com um leve sorriso no rosto.

. . .

Era uma horas da manhã quando eu finalmente pude ir embora. A madrugada estava aparentemente tranquila, então aproveitei e pedi para Owen, um dos médicos da minha equipe, ficar no meu lugar. Fui até a sala da endocrinologista, onde minha amiga trabalha. Ela assinava alguns papéis quando eu entrei sem bater.

- Ally, eu estou...

- Você não se lembra como se bate numa porta, não? - Ela me cortou sem me olhar.

- Não achei necessário... a não ser que Troy estivesse aqui, aí seria necessário. Nunca se sabe o que vocês dois estão fazendo, não é? - Ela me fuzilou com o olhar, então eu ri e continuei: - Só vim avisar que o meu plantão já acabou e eu estou indo para o apê, ok?

- Ok.

- Você sai que horas hoje?

- Em uma hora e meia. Eu preciso assinar uns papéis aqui. - Disse ela. - ...Acredita que hoje mais cedo, uma menina perguntou o que eu faço no hospital?! - Seu tom era de indignação.

- Acredito sim... Eu, por exemplo, só sei o que é um endocrinologista porque conheço uma.

- Sério? - Ally arqueou as sobrancelhas.

- Claro que não! Eu sei o que você faz; cuida dos transtornos das glândulas endócrinas e blá blá blá.

- Meus parabéns!

- Muito obrigada. Agora eu estou indo embora, não aguento nem mais trinta minutos acordada e hoje o dia não foi bom comigo. Tchau, Ally.

- Até mais, Lauren.

E no caminho de casa, a voz de Aiden ficou vagando em minha mente. As luzes da rua passavam corridas por mim dentro do carro e tocava uma música só um pouco triste, acho que era o mundo cospirando com a minha mania de sentir-mal as vezes. Eu não estava nem um pouco afim de chorar naquele dia, então troquei aquela estação por uma de rock. O farol se fechou. Escorei os braços no volante com os olhos já baixos. "A senhora acha que eu vou conseguir comemorar meus cem anos um dia?", suspirei. É tão frustrante. A voz fina daquele pequeno garoto se repetiu mais e mais vezes. Eu faria qualquer coisa que estivesse ao meu alcance, qualquer coisa mesmo para conseguir a cura para ele, para todos os pacientes daquele hospital, para todas as pessoas doentes que habitam esse mundo podre... mas quem sou eu além de chefe de uma equipe de oncologistas? ...As vezes me sinto meio incapaz de qualquer coisa, como se fosse difícil alcançar a nuvem carregada bem acima de mim.

O farol se abriu e eu acelerei.

A melhor parte do dia foi chegar no meu apartamento, tomar um banho quente e demorado e depois, cair no mais profundo dos sonos.

Live And Let DieOnde histórias criam vida. Descubra agora