Seis de julho

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Lauren:

Eu queria que esse fosse apenas mais um dia comum deste hospital, mas justamente neste dia cinza, não era. Ao menos não para mim. Na madrugada de hoje, seis de julho, eu voltei para casa com o coração dilacerado e machucado, senão arrancado do peito. Com lágrimas excessivas que rolavam da maneira mais lastimável no meu rosto e também com um ódio lúgubre da vida. Infeliz e crucial e quase torturante. Ou torturante.

Nesta madrugada, lastimavelmente, eu perdi um anjo. Para todo o sempre.

Meu pequeno amigo já não estava mais aqui. Aquele garoto de olhar feliz e sorriso cativante que eu tanto amava estava... morto. Um anjo brincava no céu. Foi mais uma pobre vítima do terrível cancro.

Não queria acreditar, não podia acontecer!Não havia lógica. Ele deveria acordar logo. Foi assim que pensei. A bruta realidade veio como um ácido derretendo tudo o que era eu. Como cair num buraco infinito e sem luz. Como dizer adeus uma última vez. Eu tentei encontrar uma resposta vinda de um ser maior. Tanta estupidez da minha parte, eu só queria saber como pôde ser tudo tão injusto... tolice. Era tarde e aquele menino jamais voltaria. Aquele menino tinha acabado de completar seus seis anos.

Despótico! Aiden se foi

Sua voz brincava no meu consciente fazendo-me lembrar que seu sonho de viver por cem anos agora não passava de uma qualquer lembrança à memória dele. Eu nunca mais o veria sorrir.

...Eu deveria saber lidar com esta situação, assim como lidei com outras passadas. Eu precisava ser fria ou fingir que era, ao menos. Acontece que se tratava de Aiden. Eu deveria mostrar meu sangue frio, mas isso soa incapaz agora. Chega uma hora que, como necessidade, nos rendemos já que não há mais à se fazer.

Eu estive ao lado dele e ouvi seu último suspiro. Vi a linha verde do monitor de batimentos cardíacos se tornar imóvel e o som fino e contínuo como se fosse me deixar surda, como se uma agulha perfurasse meus ouvidos. Fizemos a massagem cardíaca e foi inútil. Choques também eram banais. Eu vi o fim.

Não chorei. Mostrei a reação negativa mas consegui me conter. Não pude noticiar os pais de Aiden, eu precisava tem sangue frio para fazer isso, mas essa não era como todas as outras vezes que dei uma triste e trágica notícia para algum familiar. Era diferente. Era doloroso demais, deplorável demais. Faz-me parecer um monstro, eu sei... é só o meu trabalho, treinei para ser fria e fui, mas não agora. Se todo o médico se afundasse numa depressão profunda sempre que perdesse um paciente, não teríamos médicos no mundo. Mas hoje, só hoje, eu me entregaria.

Quando eu vi que não havia mais jeito, Aiden já não voltaria mais, eu fui falar com o diretor do hospital. Ele é meu amigo e pensei que talvez pudesse me entender. Enquanto o elevador subia até o andar de sua sala eu aproveitei para pensar, meu mundo estava desabando de pouco a pouco. Estiquei os dois braços o me apoiei na parede gelada de espelho, deixei a cabeça pender para baixo e senti a garganta se apertar. Prendi meu maxilar e dei o meu melhor para não chorar. Respirei fundo e levantei a cabeça, eu não poderia deixar as lágrimas correrem. Não agora. A porta do elevador deslizou e eu saí, a sala do diretor era na grande porta chamativa de madeira. Eu nem pedi para que anunciassem a minha entrada, apenas bati na porta e entrei.

- Com licença, senhor. - Eu disse, minha voz estava meio falhada. - Me perdoe por entrar assim, não levarei seu tempo.

- Olá, doutora Jauregui. - Disse ele que estava sentado em sua cadeira giratória de couro escuro. Anthony Gargon, como chamava o diretor, olhou para mim por cima doe seus óculos redondos. - No que posso ser útil à senhora nessas horas? - Ele levou um instante para checar as horas em seu relógio de pulso, logo prosseguiu: - ...Passa das quatro da manhã, a senhora não descansa nunca?

- Quase nunca e... é isso que eu queria. - Declarei. De qualquer forma, eu realmente merecia uns dias para mim já que estou o tempo todo fazendo plantões. - Eu queria saber se o senhor poderia ceder alguns dias para que eu descanse. Realmente preciso.

- Hm... e para que seria?

Eu juro que não estava afim de me irritar, mas naquele momento, tudo poderia me deixar irritada. Eu estava tentado ser mais forte do que a porra dessa vontade de chorar o mundo!

- Serei direta. Acabei de perder um paciente e estou arrasada. Não acho que serei capaz de ficar aqui nas próximas horas, eu quero um tempo meu e espero que o senhor entenda. Era o paciente que mais...

Não pude terminar de falar quando minha voz falhou de uma vez e a garganta fechou. Apertei a boca para tentar segurar o choro outra vez. Escutei a forte respiração do diretor Gargon e então ele se levantou de sua cadeira para caminhar até mim e por uma de suas mãos em meu ombro. Com um forte aperto, ele preparou suas palavras:

- Um dia, doutora Lauren, há vinte e três anos atrás quando eu ainda trabalhava como você, eu tive uma paciente terminal. - Disse ele com sua voz calma. Olhei para seus olhos e ouvi o que tinha a dizer. - Seu nome era Adriane e os olhos mais belos de todos pertenciam a ela... eu me apaixonei por Adriane. Eu a amei e a perdi. Eu perdi uma paixão e também um pouco da cor da minha vida. Não sou muito esperto para encontrar uma palavra capaz de chegar aos pés da dor que senti. É arrasador, é de sufocar, eu sei. Entendo o que você sente.

- Eu sei que precisava ser forte agora, mas... - Outra vez, não pude terminar de falar.

- Você é forte. Senão a mais forte que conheço, senhorita Jauregui. - O diretor apertou, outra vez, o meu ombro esquerdo ao falar, talvez ele queria me confortar de alguma forma. - Vá para casa esta noite e se recupere. Não posso dar mais que quatro dias para você porque a equipe de oncologistas está em suas mãos. Volte na manhã da quinta-feira.

- Muito obrigada, senhor Gargon. Com licença.

Ele acenou com a cabeça e eu fui embora. Achei que seria forte para ir até Peter e dizer que eu ficaria fora por alguns dias, não fui tanto pois as lágrimas rasgaram meus olhos quando entrei na sala onde eu estive entes e vi o corpo de Aiden coberto por um lençol branco. Doeu ver, mas eu já estava ali. Fui até seu pequeno corpo e toquei sua mão ainda coberta pelo lençol e murmurei um adeus. Depois disso eu nem tentei mais encontrar o Peter, achei que seria melhor mandar uma mensagem para Ally e avisar que eu não estaria mais no hospital, ela alertaria o Peter.

Então eu fui para casa. Chorei por todo o caminho. Quando eu enfim estava no meu apartamento, fechei todas as cortinas do meu quarto, não queria que a luz do quase dia me incomodasse. Silenciei meu celular e deixei que as horas passassem. A memória de Aiden me queimava como fogo naquele seis de julho. Meus olhos ardiam e o choro não era tão baixo. Talvez se eu jogasse tudo para fora, essa agonia passasse mais depressa.

Uma hora do dia, na qual eu não quis saber qual era, ouvi as batidas na porta. Era Ally preocupada e querendo ajudar, ela insistiu até que eu, sem pensar muito, abri a porta e a empurrei dizendo que não queria ajuda. Eu escolhi estar sozinha pois não precisava que me vissem ser tão fraca.

E foi assim o dia inteiro. Lamentando a morte do meu pequeno amigo e me perguntando como há tanta injustiça.

Estomago vazio e coração também. Entregue à seja lá qual for este tétrico e impiedoso sentimento, chegou uma hora em que eu precisava de algo que fosse capaz de tirar um pouco da dor que eu estava sentindo. Um conforto capaz de aconchegar meu peito. Foi quando pensei em Camila. Eu queria estar em seus braços apenas agora. Eu queria que ela me confortasse. Eu queria ela para limpar minhas lágrimas. Eu queria ela para estar comigo simplesmente. Sinto que só Camila poderia me servir de remédio agora.

Estiquei meu braço e peguei o celular. A luz forte queimou em meus olhos mas eu não me importei, assim como não me importei com as dezenas de ligações perdidas. Era bastante tarde quando eu escrevi uma curta mensagem pedindo para Camila vir me salvar.

Live And Let DieOnde histórias criam vida. Descubra agora