Confusão mais contradição

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Lauren:

Num dos sete dias da terceira semana de setembro eu deduzi que não existia mais um nósentre Camila e eu. Era bastante claro que um mês inteiro sem se falar resultaria num perfeito ato sem volta. Foi tempo demais largado assim ao vento. Camila foi dura comigo. Sabia que ela estava com raiva mas não posso negar que, bem lá no fundo do peito, crescia uma esperança de que, em breve, ela me procuraria. Foi bem aí que a vi sendo tão impassível: não se deu ao trabalho de mostrar que estava com saudades. E eu sei que estava. Sequer correspondeu quando eu a cumprimentei um dia desses no hall do hospital. Também não se desculpou outra vez que tropeçou e quase me derrubou. Essa sua atitude imatura fez-me largar aquele aborrecimento aflitivo pós nosso término por uma certa aversão... Ora, era de se esperar! O que posso fazer? Para começar, ela vem me pressionar a contar algo que eu não queria, logo depois termina o namoro. E como se não bastasse, passa a me ignorar, como se eu não existisse mais no mundo e, ainda pior, se comporta como uma tola infantil que se esqueceu dos modos quando tentei trocar um pequeno afeto. É óbvio que isso sucederia no meu cansaço para com ela. Eu já disse antes que não sou de ferro, mas também não sou de algodão. Eu quis demais tê-la de novo. Doeu quando mais senti sua falta poucos dias depois de termos brigado. Fez-me chorar, me arrepender. Então os dias, o mês se foi. Agora só estou conformada de que não posso mais ter Camila. Seja o que for...

De qualquer modo, é ótimo não perder mais meu tempo mazelando tanto sobre Camila. Meu desapego é supimpa à essa altura já que hoje tenho uma cirurgia marcada com a equipe. Não posso ter a cabeça em outro lugar a não ser na operação que farei. É realmente necessário estar focado. Sem Camila martelando a mente.

Esta será uma operação mais avançada, cirurgia oncológica do aparelho digestivo. O paciente é um garoto chamado Kurt, nascido em dois mil e três. Eu precisava estar pronta até às quatro e trinta da tarde, que é a hora marcada. E principalmente, com a cabeça fria.

. . .

Uma vez que a cirurgia havia sido um sucesso, eu pude descansar. Não por bastante tempo, consegui apenas almoçar... meio tarde, mas está valendo. Logo tive que voltar ao trabalho, mas desta vez era uma reunião com o diretor do hospital. Essas são reuniões mensais, de acontecimento necessário. Eu, como chefe dos oncologistas na minha área, preciso comparecer. Encontrei o doutor Peter a caminho da sala de reuniões e o acompanhei até lá. Ele perguntou sobre a cirurgia que eu tinha feito há minutos atrás e na subida do elevador nossa conversa se estendeu. Terminou quando a secretária de Anthony Gargon, o diretor, pediu para que entrássemos, pois a reunião estava prestes a começar.

Além de nós dois, mais nove pessoas ocupavam a sala. Não era preciso se encher de modos e etiquetas, nossas reuniões são costumeiras, deixou há tempos de ser tão formal.

- Acho que estão todos aqui... Confere? - Disse o diretor, obtendo a resposta que esperava. - ePois bom, por onde costumamos começar mesmo?

- Não temos um assunto pelo qual começar. A gente só... só começa.

- É, tem razão. - O diretor assentiu quando puxou sua grande cadeira, sentando-se de frente para todos presentes daquela sala. Ele estava de bom humor, notei.

- Vale a pena lembrar que este foi um ótimo mês para o hospital. - Pela primeira vez, Peter falou. - Foi iniciado um novo projeto com os doutores da alegria, é um projeto só deles, são os únicos donos de qualquer crédito.

- Você está falando sobre os animais que querem trazer ao hospital?

- Estou sim, diretor. Tem um tempo que querem trazer essas... esse novo método. Animais têm poderes com as crianças. É incrível como os pacientes ficam bem, como dão risada e até respondem melhor aos tratamentos.

- É uma ideia muito boa mesmo. - Afirmei quando Anthony olhou para mim. Logo a sala encheu-se de comentários sobre o projeto dado. Comentários positivos que gostei mesmo de ouvir...

Os doutores da alegria fazem trabalhos voluntários aqui no hospital e estão mostrando essa ideia de uso dos animais para a equipe faz um tempo. Eu já sabia, portanto. Esses novos amigos podem auxiliar no tratamento das nossas crianças e isso resultaria num perfeito progresso. Bom que temos a aprovação do diretor. Se Anthony Gargon gosta, é bem provável que todos vão gostar também. Ele é sábio, sabe o que é bom para o hospital e para os pacientes.

- Os animais são bem-vindos ao nosso hospital. Mas eu, como diretor, exijo a competência de todos e não só dos doutores da alegria. Sei que sabem o que estão fazendo, mas todo cuidado é pouco. - Gargon mostrava seriedade enquanto todos o escutavam. Concordei com o que estava querendo dizer, era o certo.

Então o que se fez como primeiro tópico da reunião acabou-se. Havia outras mil coisas a serem discutidas e o tempo não é longo. O objetivo em geral era jogar ideias à mesa, colocar as reclamações para todos os presentes e arranjar soluções. Era, enfim, uma reunião de trabalho como todas as outras. No fim o diretor agradeceu pela nossa presença e nos dispensou.

Foi Peter quem me acompanhou outra vez.

- Já está indo para casa, Lauren?

- Não, não... Ainda tenho mais duas horas para cumprir. Hoje só saio às dez da noite.

Nós saímos da sala de Anthony depois de todos. Nenhum motivo específico, apenas andamos mais devagar que os outros.

- E eu vou embora agora... Estou com tanto sono por minha filha não ter deixado eu dormir durante a noite. Ela está meio doentinha por causa dessa mudança de clima, sabe? - Peter inclinou-se para apertar o botão do elevador e prosseguiu mudando o assunto repentinamente: - Ah, vou sair mais cedo até a próxima sexta-feira, semana que vem tenho plantão. - Contou (ou talvez tenha lamentado, não tive a certeza). Fez uma cara de cansaço mas sorriu em seguida.

- Uh, boa sorte!

- É... eu vou precisar.

No minuto seguinte, Peter me desejou uma boa noite e se despediu com um aperto de mão. Quem estava cansada e com sono também era eu. Pedi um café na cozinha do hospital e me presenteei com dez minutinhos livres que usei no jardim do prédio.

O vento gelado fazia a decoração verde e cheia de folhas balançar. As quatro palmeiras do jardim bem tratado do hospital dançavam de um lado para o outro enquanto o ar soprava. E aquele jardim... aquele jardim despertou um mim uma recordação até bem recente. Lembrei-me do dia em que Camila esteve no meu apartamento. Acho que era início do julho.

Foi uma vez em que descemos até o hall do prédio onde eu moro e ficamos por lá durante uma hora muito, muito boa. Naquela noite ela descobriu que, de quando em quando, eu fumava. Naquela mesma noite eu prometi que não fumaria mais...

Os beijos que ganhei dela foram tão bons. Seus abraços também. Mas que saudade boba essa que veio apertar o peito logo agora... Queria tanto que Camila fosse mais paciente comigo... tanto. Eu juro que estava disposta a fazê-la feliz. Queria que nosso namoro ainda durasse, mas não mais, né? Será que tudo se perdeu?

Sinto a falta dela.

Camila é minha nova confusão. É meu ato mais forte de contradição. Esses últimos dias criei um certo desapego por ela. Estava com raiva, não consegui entendê-la quando decidiu me ignorar (tudo bem, isso eu não vou entender tão cedo). Mas agora, de uma hora para outra, estou aqui, voltando num passado dela e meu e o revivendo na cabeça para, em vão, matar a saudade.

Sou idiota caso negue que a amo. Sou mais idiota ainda se pensar que ela ainda gosta de mim. Qualquer outra coisa pior que idiota eu sou também caso alimente essa falta que Camila faz. Sua escolha foi me esquecer e eu não posso interferir nisso, não me dou o direito.

E por mais que machuque ter que assumir isso para mim mesma, preciso tentar fazer como ela: esquecer.

Live And Let DieOnde histórias criam vida. Descubra agora