Sem marra

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Lauren:

Meus dias estavam começando ruins e terminando péssimos. Todas as manhãs desse longo mês de setembro, eu acordei sem querer ter acordado. Meu corpo parecia vazio e o silêncio em mim era um delírio particular. E eu? Eu sabia melhor do que ninguém o motivo de toda essa minha ânsia.

Faltava pouco para outubro chegar, mas o que queria mesmo era o fim desse ano.

Voltei a visitar meu pai. Apenas uma vez desde a primeira, ele ainda evita tantas visitas. É chato ter que implorar para que ele não provoque um encontro entre Chris e eu. Papai achava que seria bom para nós, eu entrava em total desacordo. Mas digo: até que foi bom ver meu pai de novo. Só que ao mesmo tempo que recupero uma parte perdida em mim, que é esse contato com papai, outra some. Tive de aprender a não conviver em família (se é que posso chamar o que eu tenho defamília) e não foi tão difícil assim passar tanto tempo longe... Mas agora que eu preciso, que eu mais preciso, não sei mais como desapegar de alguém.

É Camila. Ela está presente aqui quando é dia, tarde e à noite. Só não fisicamente.

Até criei uma escala: a escala da pessoa que termina com quem ama. É bem simples, consta só as minhas primeiras fases. Acredito que bem posso chamar de zig-zag, já que num dia eu pensava que iria morrer de saudade, no outro eu pensei estar recuperada, logo depois disso parecia que Camila tinha morrido para mim, mas então tudo que eu queria era tê-la por perto. Uma montanha russa. E eu nunca fui tão contraditória na minha vida, tão indecisa, juro! A fase final ainda é uma lacuna. Qualquer amanhã é um mistério.

E dirigindo meu carro, olhei para o lado e vi a última vez que toquei em Camila.

- Até quando isso, Deus? - Como se Ele pudesse mudar esse meu drama.

O caminho até o hospital estava tranquilo como de rotina. Era sexta-feira de manhã, estava um frio suficiente para ter de usar casaco.

Uma vez que eu estava no estacionamento do hospital, alarmei meu carro e saí. Logo no hall notei uma movimentação diferente. Barulhos, risada e... latidos. Hoje era o primeiro dia que os doutores da alegria trariam animais para cá e só agora notei que eu tinha me esquecido totalmente disso! É ótimo, até me animei um pouco.

Enquanto acompanhava aquela cena de cachorros e crianças brincando, não pude conter o sorriso. É comprovadíssimo que bichos ajudam na recuperação dos pacientes, nem precisa ser criança. Acho que posso me acostumar a ter a companhia desses novos... amigos.

Mas de repente:

- Donzela! - Ouvi ao mesmo tempo que senti alguém cutucar meu ombro. Virei, mas nada vi. Do outro lado também não vi. Mas sem avisos, alguém pulou na minha frente (literalmente pulou).

- Oh! Harry...

- Lauren, a doutora mais graciosa, Lauren.

Ele, com seu sorriso habitual, curvou-se diante de mim. Se abaixasse só um pouco mais, aposto que tocaria seu nariz vermelho de palhaço no chão. Voltou a me olhar e seu sorriso ainda estava lá. Apesar de achar que Harry é um inconveniente, eu gostava daquele sorriso bobo (é, apenas do sorriso). Harry levantou uma das sobrancelhas e abriu um lado de seu jaleco branco com estampa de patinhos, de lá ele retirou uma grande flor de plástico que deveria imitar um girassol.

- Eu nunca vi muita lógica em presentear uma flor com outra flor, mas acho um ato bonito... Você não concorda? - Apenas sorri pegando aquele girassol desengonçado de suas mãos. Será que este doutor da alegria era tão burro assim para ver que eu não estava muito contente? - Ok, eu queria falar uma coisinha com você, Lauren.

Live And Let DieOnde histórias criam vida. Descubra agora