Entre papos e beijos

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Heitor deu uma risada irônica e disse:

– Flávio, vai tomar no cu. Vaza e me deixa dormir.

– Eu estou falando sério. Eu ia te perguntar isso ontem, mas você deu aquele chilique e saiu do carro correndo na chuva e nem esperou eu terminar. Aí vim aqui para ver se isso te acalma um pouco.

Heitor olhou para Flávio e por um momento sentiu um frio na barriga. Ele sabia quando o outro estava falando a verdade e quando era apenas uma brincadeira. E, naquele momento, a situação toda parecia muito real. Sem saber o que fazer, pediu para o amigo entrar e disse fechando a porta:

– Vamos conversar pois eu não sei se estou com clima para...

Como sabia que esse gesto era praticamente um sim, Flávio não perdeu tempo e interrompeu o amigo com um beijo. Eles ficaram se beijando longamente na sala do apartamento até que ele disse:

– Se você quis me beijar de novo, é porque sentiu o mesmo que eu... Foi diferente e... Sei lá... Você foi o primeiro cara que eu beijei, nunca tive vontade antes. Aliás, nem curto essas paradas...

Heitor interrompeu a fala com outro beijo e eles ficaram juntos, entre conversas e beijos, durante a tarde toda. Quando a mãe de Heitor chegou, encontrou os dois na sala vendo futebol e conversando sobre os lances da partida.

– Ah! Vejo que vocês voltaram a conversar.

– Esse babaca veio aqui e ficou tocando a campainha até eu atender.

– Meu filho, não fale assim do seu amigo.

– Está vendo como ele me trata, Dona Rosana? Mas, se ele não me desculpasse, eu iria continuar tocando a campainha. Ia vencer pelo cansaço.

***

A cena do primeiro beijo da dupla sempre passava como se fosse um filme na cabeça de Heitor. E naquele dia, no trajeto de volta para casa após a descoberta da gravidez de Suellen, a visão tinha uma simbologia levemente nostálgica e até melancólica.

"Acho que agora vamos nos encontrar menos ainda", pensou. "Mas, eu estou bem com a Natalie. Não tenho motivo para me preocupar", continuou.

Heitor não sentia paixão ou qualquer coisa assim por Flávio. Por outro lado, tinha um enorme desejo de estar com o amigo e, entre uma saída e outra com Natalie e, de acordo com as possibilidades de sua agenda de estudante e estagiário, sempre arrumava um jeito de saírem juntos e se entregarem ao intenso desejo. O outro, por sua vez, também não sentia paixão pelo amigo, mas compartilhava a vontade incontrolável de ficar junto dele. Para ambos, bastava a percepção de que a sensação que sentiam juntos era diferente de quando estavam com mulheres.

O pensamento de Heitor foi interrompido quando o motorista do carro em que estava parou o veículo e disse:

– Chegamos!

– Poxa! Muito obrigado!

Ele saiu do carro, entrou no prédio e quando chegou no apartamento, sentou na sala e mandou uma mensagem no grupo da sua turma da faculdade dizendo que o amigo estava bem, mas ia ficar em casa se recuperando.

"Depois ele mesmo manda as novidades. Em breve ele vai estar melhor do que nunca.", digitou em uma mensagem para encerrar o assunto.

Os membros do grupo começaram a comemorar a notícia. Heitor deixou o celular na mesa de centro e foi para a cozinha, onde encontrou a mãe preparando o jantar.

– Que bom que você chegou, filho! Seu pai e sua irmã saíram para comprar umas coisas que estavam faltando para o jantar e fiquei sozinha.

– Eu te ajudo, mãe. O que você precisa que eu faça?

– Mexe o molho, por favor! Você acredita que eu esqueci de comprar suco de uva? Esqueci que seu pai não está tomando bebida alcoólica por causa dos remédios.

– Acontece, mãe. Fica tranquila.

– Ele e a Marina foram ao mercado comprar suco de uva, mais queijo e escarola para eu fazer uma salada para nós. Mas, você voltou cedo do churrasco. Aconteceu alguma coisa?

– Hum... Nada demais! O Flávio precisou ir embora mais cedo, levei ele em casa pois ele tinha bebido e chamei um carro no aplicativo para me trazer aqui.

– Ainda bem que você veio mais cedo... Mas, o que aconteceu com o Flávio? Ele bebeu demais?

– Não, não... Só teve um probleminha pessoal e precisou ir embora. Aí aproveitei para sair também pois o churrasco não estava muito legal.

Neste momento, o pai de Heitor entrou na cozinha seguido pela filha que, por sua vez, trazia o telefone do irmão:

– Aí... Seu telefone está tocando. É aquele seu amigo.

Ele pegou o aparelho e foi para o quarto atender:

– Oi, cara! Está tudo bem?

– A Suellen quer falar com os pais dela hoje. Conhece algum lugar onde eu possa comprar uma aliança tipo... agora?

– No shopping. Tem uma loja na entrada e outra no piso superior.

– Valeu! Vem aqui em casa amanhã de manhã para a gente conversar e eu te explicar as coisas. E desculpa pelo que aconteceu mais cedo.

– Está tudo bem. Amanhã de manhã eu vou aí.

Heitor desligou o telefone e voltou para a cozinha.

– E então, meu filho? Aconteceu alguma coisa? – quis saber a mãe.

– O Flávio está ferrado. A Suellen está grávida dele...

– Quem? A Suellen que estuda Engenharia de Produção? – quis saber Marina. Ele confirmou e a irmã continuou – Que babado! Ela faz duas matérias na minha turma. Vou contar no grupo da sala... – disse a jovem enquanto começava a digitar.

– Espera um pouco, Marina! Os pais da Suellen não sabem e vai que a informação chega até eles antes dela contar. Parece que os dois vão ficar noivos...

– Noivos?? O babado só melhora!

Neste momento, o pai de Heitor chega na cozinha e, sentindo o clima fraternal diz:

– Meus filhos, eu vou adiantar um pouco as coisas. Ia dar a notícia durante o jantar, mas, como estamos todos muito alegres e unidos como uma família feliz, vou falar já.

Os filhos olharam para o pai enquanto a mãe abaixava o fogo do molho sem deixar de mexer a mistura, mas com o olhar fixo no marido. Marina, entretanto, era a mais ansiosa. Com cerca de um metro e setenta, magra, pele morena, cabelo cacheado bastante volumoso em estilo black, olhos castanhos e pouca ou nenhuma maquiagem, apenas um batom que sempre acompanhava o tom de sua pele, ela tinha dificuldade em disfarçar a ansiedade e nervosismo em situações de tensão.

– Heitor, Marina... Marina, Heitor... – Nelson sempre dizia o nome dos dois dessa forma como maneira de demonstrar que não tinha um filho preferido, mas começava pelo filho por ser o mais velho dos dois – A partir de fevereiro do ano que vem, eu vou começar a trabalhar na cidade de São Paulo e não quero deixar minhas crias e nem minha esposa para trás. Assim, vamos todos nos mudar para São Paulo no fim de janeiro.

Se Marina, que desde cedo sempre sonhou em morar em uma grande cidade, comemorou, o irmão não esboçou nenhum sorriso. Ele sempre gostou da rotina pacata que levava e estava muito feliz com a sua vida atual pois tinha estágio com chance de efetivação ao final do curso, uma quase namorada e um ficante (que certamente deixaria de carregar esse título por causa da gravidez de Suellen).

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