Não está sendo fácil

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Heitor, visivelmente chateado, disse:

– Mas, pai... E a minha faculdade, a faculdade da Marina... Como vamos fazer? Tem a loja da mamãe também e...

– Uma coisa de cada vez, meu filho! – disse Nelson.

Ele abriu a garrafa de suco de uva e colocou em uma taça enquanto Rosana continuava mexendo o molho que preparava. O filho também acompanhava atentamente os movimentos do pai quando Marina disse:

– Vish, maninho! Se liga: a Suellen mandou mensagem para uma amiga falando da gravidez, ela printou, mandou para uma colega da minha turma e agora o grupo está comentando. Acho que está liberado falar que ela e o seu amigo vão ficar noivos. – logo depois, ela digitou algo rapidamente e continuou – Pronto! Já não é mais segredo! Adoro!

– Minha filha, deixe o celular de lado um pouco. Por favor! – disse Nelson chamando a atenção.

– Desculpe, pai!

Nelson, com sua voz grave, alto, magro e cabelos naturalmente pretos bem curtos e sem qualquer fio branco apesar da idade, impunham respeito. Sempre bem vestido com peças em tom sóbrio que combinavam com sua pele morena, barba bem feita e óculos redondos que ornamentavam seus astutos olhos castanhos, que não deixavam passar nenhum número nos relatórios que recebia na empresa.

– Bem, continuando – disse dando um pequeno gole no suco – Em fevereiro vou começar a trabalhar em São Paulo. Continuo na mesma empresa, mas eles querem expandir alguns negócios e decidiram montar um Centro Administrativo por lá e serei o responsável por liderar esse projeto. Eu acredito que, além de uma excelente oportunidade profissional para mim, vai ser uma chance igualmente incrível para a educação de vocês e para a expansão da loja da Rosana, considerando umas ideias que tivemos. Vamos alugar esse apartamento, pedir transferência na faculdade de vocês... Vai ser trabalhoso, mas não vai ser muito difícil. Eu e a mãe de vocês já conversamos bastante sobre isso e decidimos que a loja deve continuar, vamos promover uma vendedora muito dedicada a gerente e seguimos a vida.

– Mas, pai. É o meu último ano da faculdade! Eu posso ficar aqui, terminar meu curso, cuidar da loja e depois vou para São Paulo para morar com vocês. – tentou argumentar o filho.

– Heitor, eu entendo a sua preocupação, mas você vai com a gente. Não quero deixar ninguém para trás. Quando você terminar a faculdade, fazer uma boa pós-graduação e ganhar experiência, você decide entre voltar, ficar por lá, ir morar fora... Aí a vida é sua! E fim de papo! – disse Nelson dando mais um gole no suco.

Percebendo que tinha perdido a discussão, o filho foi para a sala e Marina disse:

– Pai, eu estou muito feliz por você e super animada com a possibilidade de ir morar em São Paulo. Vou terminar minha faculdade, fazer uma pós, estudar alguns idiomas, depois quero fazer intercâmbio...

– Eu fico muito feliz vendo você planejar essas coisas, filha. Mas, seu irmão está chateado. Você pode ir lá conversar com ele?

Marina atendeu ao pedido do pai enquanto Nelson se aproximou da esposa e disse:

– O cheiro está ótimo! Você capricha sempre!

Rosana sorriu e pediu um gole de suco também. O marido pegou uma taça, serviu a bebida e depois olhou para a esposa. Percebeu que ela continuava a mesma Rosana que conhecera décadas antes, no início da faculdade: o mesmo olhar doce e encantador, a mesma pele morena escura, lábios grossos sempre com um discreto batom combinando com a maquiagem leve que trazia em seu rosto, roupas leves e coloridas e muito bem alinhadas à sua estatura média e seu corpo sempre muito elegante, tudo isso ornado por diversos modelos de cabelos de sua coleção de laces e perucas, que escondiam o cabelo afro já com alguns fios brancos e sempre muito bem penteados. Ele entregou a taça dizendo:

– Como quando nos conhecemos! – os dois brindaram e ele continuou – Você acha que fui muito rude com o Heitor?

– Meu amor, essa insatisfação é passageira, daqui a pouco acaba. Mas, ele vai ficar de bico por alguns dias pois você sabe como esse garoto é. Lembra quando ele queria uma mochila marrom, eu comprei uma azul e ele usou, mas ia e voltava da escola com cara de injustiçado?

– Ai, ai! Esse garoto!

– Vai dar tudo certo, mas no jeito e no tempo dele.

Marina chegou na sala e se aproximou de Heitor, que estava na varanda olhando a cidade e observando o céu, que já começava a ganhar tons alaranjados, denunciando o fim da tarde.

– Você está bem, maninho?

– Só estou pensando aqui em como as coisas vão ser. Vou ter que pedir demissão, terminar com a Natalie, ver esse lance da transferência, procurar uma faculdade numa cidade que não conheço...

– A gente está junto nessa da faculdade, mas, no que diz respeito à Natalie, eu não posso ajudar muito. Mas, se liga... vocês nem namoram oficialmente, Heitor! Não entendi essa preocupação toda. E quanto ao trabalho, eu tenho certeza que o papai vai te ajudar a encontrar outro estágio em São Paulo. Agora, vamos sentar ali no sofá, pois o grupo da minha turma está bombando com a notícia de que o Flávio vai ficar noivo da Suellen. Você sabe que ele passou o rodo nas meninas do meu curso, né? Tem 20 meninas na minha sala e ele pegou 18. Só eu e a Carol escapamos.

– A Carol gosta de meninas, até onde sei. E você? Vai dizer que nunca quis ficar com ele?

– Não. Ele é bonito, mas não suficientemente interessante para eu sentir vontade.

Ele pegou o celular e viu que tinha mensagens do amigo com as fotos da aliança que selaria o noivado relâmpago. Ele mostrou para a irmã e ela pediu:

– Me manda! Quero postar no grupo.

– Você está louca? Aí ele fica sabendo que vazou e vai sacar que fui eu.

– As meninas estão apostando que ele não fica muito tempo casado. E, se ficar, Suellen vai ganhar um monte de chifre.

Ele riu e os dois continuaram conversando na sala. Depois do jantar, ele pediu o carro emprestado ao pai para buscar Natalie no churrasco.

"Aqui ainda não acabou e meu pai não vai conseguir me buscar. Não quero ir de carro de aplicativo", estava escrito na mensagem que ela enviou.

Nelson consentiu e, chegando ao local, Heitor encontrou Natalie esperando no portão. Ela entrou no veículo, os dois se beijaram e o telefone dele tocou:

– Oi, Flávio! – disse ele desligando o carro e saindo do veículo.

– Putz, esse chato do Flávio de novo?

– Cara, vem aqui. Eu preciso muito falar com você.

– Eu, eu não posso... Estou com a Natalie e...

– Foda-se a Natalie! Ela não tem o que você gosta de verdade, esqueceu? E eu preciso falar com você.

Heitor olhou para dentro do carro e viu Natalie com cara de poucos amigos.

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