Metanoein

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Metanoein (s. f.):
1- Em seu sentido original, mudar o próprio pensamento.
2- Mudança que resulta ou é motivada por algum tipo de arrependimento.

Point Of View Engfa

Tudo que Charlotte achava sobre os clichês dos filmes românticos não era novidade nenhuma pra mim, mas era a prova de que me envolver romanticamente com ela tinha tudo pra dar errado. Se Charlotte não acreditava no amor em seu estado mais simples e óbvio, como ela pretendia fazer o nosso amor acontecer?

Existem diversas formas de amor e de amar. Existe até em determinados relacionamentos uma forma de amar que ultrapassa os limites saudáveis e as pessoas equivocadamente acham que é amor, e sobre isso eu concordava com Charlotte, apesar de não admitir naquele momento, pois o problema todo era muito maior.

O que eu tanto defendia é que o clichê só é clichê por ser completamente relacionável. É essa a beleza dos filmes românticos: saber identificar os clichês nos momentos comuns da vida. É quando você vê um casal aleatório na rua e se pergunta qual é a história deles, em qual dos clichês eles se encaixam. É quando você está no ponto do ônibus esperando e de repente sente aquele frio na barriga gostoso ao pensar "será que o amor da minha vida está dentro desse ônibus?"

Cheguei no quarto espumando de ódio, não conseguia parar de pensar como eu podia ser tão burra de acreditar que aquilo iria dar certo, e agora to perdendo a última noite no navio sozinha no quarto e passando raiva. Abafei meu grito no travesseiro e tive vontade de, pela milésima vez na vida, pensar mais um pouco com a cabeça e menos com o coração.

Apesar de nunca ter permitido me envolver com ela, Charlotte sempre fora meu maior clichê de amor. Quem eu sempre ficava feliz de encontrar, de olhar nos olhos ou de receber uma mensagem dizendo que estava com saudade mesmo estando comigo há minutos antes, e esse sentimento continuou ao longo de todos os nossos anos de amizade.

Aceitar aquele jantar tinha sido o meu voto de confiança em acreditar que o que eu tanto temia, não iria dar errado. Mas quanto mais Charlotte insistia em negar todas as representações claras de amor, mais eu percebia que me envolver com ela claramente tinha sido um erro. Mesmo sem ter consciência disso, eu projetei em Charlotte tudo que eu acreditava ser o ideal de um relacionamento, e quanto a gente rompeu aquela barreira sexual que a gente mesmo criou, eu tive a chance de finalmente viver tudo aquilo que eu sonhei.

Mas pelo visto ela definitivamente não estava na mesma página, e todo meu medo ficou ainda mais evidente depois de todo aquele discurso. Eu estava com tanta raiva que esqueci completamente que não demoraria até que ela viesse atrás de mim, e só me dei conta disso quando ouvi as batidas na porta.

Point Of View Charlotte

- P'fa, você entendeu tudo errado! - Falei. Mesmo podendo abrir a porta do quarto, não quis invadi-la.

Bati mais uma vez, sem sucesso.

- Por favor, vamos conversar! - Continuei sem resposta. Dei com a cara na porta de frustração e resolvi abri-la lentamente.

Encontrei Engfa encolhida na cama, com a cara enfiada no travesseiro, e lutei contra o impulso de deitar ao lado dela.

- Engfa, me escuta, nem que seja a última vez! - Pedi.

- Eu já ouvi o suficiente. - Ela respondeu, com a voz abafada pelo travesseiro.

- Mas entendeu tudo errado. - Bufei. - Poxa, P'fa, a gente sempre conversou sobre tudo... Olha pra mim, deixa eu te explicar o que eu to sentindo aqui dentro, e eu também quero te ouvir.

Ela finalmente se mexeu, sentando na cama de frente pra mim, mas ainda numa distância ridícula. Ela continuava sendo a mulher mais linda do mundo. Sua roupa preta agora toda amarrotada, o cabelo bagunçado, os olhos nublados e confusos. Não disse nada, mas ficou imóvel me encarando, e eu entendi como uma deixa pra começar a me explicar.

- Você sabe que até pouco tempo atrás se alguém me perguntasse se eu acredito em amor à primeira vista, eu diria que não acredito nem no amor. - Obviamente ela revirou os olhos e eu fiz uma careta por já ter começado do jeito errado. - Mas você me fez ser diferente, P'fa. E não é porque eu acredito que desde a primeira vez que a gente se viu a gente estava destinadas a ficar juntas, eu ainda acho isso a maior baboseira do mundo, pensa o tanto que a gente viveu até aqui...

Através dos olhos dela notei que ela estava visualizando o mesmo plano sequência que eu. Desde que a gente se conheceu, por tudo que o nosso amor passou, mudou, se transformou. Todas as outras pessoas que a gente se envolveu e, no fim, quem estava sempre lá era uma a outra.

- A gente não é um clichê, Engfa. A gente é de verdade. O que eu sinto e o que eu quero viver contigo é real. - A expressão dela mudou e eu interpretei como uma permissão pra sentar na cama de frente pra ela. - O que eu quero que você saiba é que eu aprendi que amar é também uma escolha. E eu escolhi você. - Falei cada uma das palavras de maneira calma e clara, com o máximo de verdade que eu consegui imprimir no tom de voz. Uma lágrima escorreu dos olhos dela.

- Amor, eu não acredito em clichês porque o que eu sinto por ti eu nunca vi em filme, livro, nem em lugar nenhum. Eu não acredito em clichês porque o que a gente tem juntas idealização nenhuma conseguiria superar. Eu não acredito em clichês porque eu sei que eu não preciso de alguém pra viver, e nem você precisa, e eu poderia viver sem esse amor mas eu simplesmente não quero. Eu quero é você.

- Essa foi a cena mais clichê que eu já presenciei em toda minha vida. - Foi a única frase que saiu da boca dela, que mesmo em meio às lágrimas, tinha um sorriso retardado no rosto.

- Engfa Waraha do céu, eu não sei mais o que fazer contigo! - Falei, meio rindo, meio rangendo os dentes de nervoso.

- Vem me dar um beijo. - Pediu, toda atrevida.

Me joguei por cima dela segurando em seu rosto com as duas mãos, e lhe dei um beijo urgente e intenso, preenchendo por completo toda extensão daquele gesto.

- Eu trouxe a tua sobremesa. - Falei, ainda com a boca quase colada na dela.

- E você ainda vai ter a coragem de dizer que isso não foi completamente clichê?

- Tá bom, Engfa. Clichês tem lá a sua razão de ser. - Afinal de contas, amar também é abrir mão de ter razão.

- Eu te amo, sua chata. - Antes que eu pudesse responder, ela emendou outro beijo, afinal de contas ela já sabia a resposta.

Presente de GregoOnde histórias criam vida. Descubra agora