Akrasia

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Akrasia (s.f.):
Na filosofia grega, significa uma ação que contraria o próprio juízo de valor da pessoa que a pratica.

Point Of View Charlotte

A conversa com Chompu me deixou com uma sensação estranha no peito. Como se um peso tivesse se instalado sem que eu soubesse sua origem. Resolvi ignorar a tal sensação por enquanto e aproveitar a companhia da minha amiga. Expliquei pra ela sobre as fases do concurso e que precisaríamos do depoimento dela também pra fase 2. Apesar das ressalvas que ela levantou anteriormente, topou na hora nos ajudar e se empolgou junto comigo. Quando vi, boa parte da tarde já tinha ido embora.

Depois que deixei Chompu, resolvi passear no lago e pensar nas coisas que ela havia me dito. Parando para refletir nossa relação, eu sabia que Cho tinha razão em suas palavras. Engfa e eu éramos muito mais do que só amigas, ela era minha alma gêmea em todos os sentidos da expressão, amor de alma, de muitas vidas. Sempre a tratei com um carinho e cuidado que, analisando agora, talvez seja maior do que o que eu dispenso à maioria das pessoas. O que significa que não teremos que mudar a forma de nos tratar, então os receios de Chompu são infundados. Ou pelo menos eu espero que sejam. Nós duas não vamos confundir as coisas só porque quem vê de fora confunde. Certo?

...

Busquei P'fa em casa, como combinamos hoje ela iria dormir na minha. Ao chegarmos em casa, encontramos Heidi e Tina aconchegadas no sofá, assistindo Marima tocar violão e cantar. O cheiro bom da comida de mamãe reinava no ambiente.

- E ai, maninha, cunhadinha... - Heidi nos cumprimentou fazendo graça. - Soube que vocês já contaram a novidade pra família da Engfa...

- Como você soube?

- Plaifa ligou pra Marima hoje.

- Mas é claro que aquela peste ia ligar! - Engfa responde irritada, o que me faz rir do jeito dela.

- Mas me digam. - Minha irmã interrompe. - Estão preparadas pra lidar com a sogra mais feliz desse mundo?

Fiquei sem entender nada e justamente quando eu ia perguntar, minha mãe entrou na sala toda alvoroçada.

- CHARLOTTE! Nem acredito que vocês duas tão finalmente juntas! - Minha mãe nos envolveu em um abraço apertado, estrangulando a mim e a minha melhor amiga ao mesmo tempo. - Estou tão feliz! E você, Engfa? Como é que vocês me aprontam uma dessa e não me contam nada? Fiz um jantar pra gente comemorar essa notícia maravilhosa!

Mamãe saiu da sala de volta pra cozinha e eu não sabia o que pensar, muito menos o que falar. Jamais imaginei que ela teria essa reação. Eu nunca apresentei ninguém em casa, porque nunca ninguém teve importância o suficiente pra isso, mas fico me perguntando se mamãe teria essa reação com mais alguém que não fosse Engfa e de repente a mentira não me parece mais justa. Acho que agora entendo o que a morena estava sentindo de manhã. Ao olhar pra ela, vejo que sua reação não é muito diferente da minha. Sua cara de espanto não esconde que pra ela também foi uma surpresa. Só então noto Marima, Heidi e Tina segurando o riso e percebo que as três armaram pra mim.

- Eu vou matar vocês. As três! - Elas então caíram na gargalhada de vez, me irritando ainda mais.

Mamãe interrompe meus planos de homicídio gritando da cozinha que o jantar está servido e P'fa segura minha mão, me puxando em direção ao jantar enquanto sussurra:

- Deixa, foi melhor assim.

Point Of View Engfa

Durante o jantar com a família de Charlotte, tivemos mais uma vez que responder todas as perguntas que minha mãe já havia nos feito, o que de certa forma era bom, pois nos ajudava a treinar a história pro concurso, mas ao mesmo tempo tentamos baixar um pouco as expectativas de Joan. A reação da minha "sogra" foi tão inesperada pra mim quanto a da minha mãe, mas confesso que no fundo fiquei orgulhosa de mim mesma por saber que a faria tão feliz ver eu e Charlotte juntas.

- Mas me diz, Char. Você já tá pronta pra assumir que sua irmã sempre tem razão? - Heidi interrompe o interrogatório de sua mãe, deixando a mim e a Lotte confusas. - Que mulher na cama é muito melhor do que homem!

- HEIDI! - Charlotte e eu berramos juntas, enquanto dona Joan se engasgava e Marima e Tina gargalhavam.

Nunca antes vi a mais nova tão desconcertada em toda a vida, e eu sabia que ela nunca teve problemas em conversar sobre sexo. Afinal como ela diz "corpo é corpo, todo mundo tem". Minha sogra, notando o desconforto da filha do meio e a brincadeira, tratou logo de cortar aquele assunto com a sobremesa.

Depois do jantar, fui tomar banho enquanto Charlotte acessava o site do concurso pra preenchermos o tal questionário de inscrição. Vesti uma camiseta gigante de Lotte que ia até minhas coxas e eu sempre usava quando dormia na casa dela e fui me sentar com ela na cama.

As perguntas do questionário até que eram simples. Coisas como nome, idade, profissão, como se conheceram, como ficaram sabendo do concurso, por que merecem ganhar esta viagem e etc.

Essa pergunta do merecimento era talvez a mais complicada de ser respondida. Afinal, o que faria alguém merecer mais do que outra pessoa a viagem? Mas Charlotte parecia saber bem a resposta, porque não teve dificuldade em puxar o notebook mais para si e escrever sem pausas. Cheguei mais perto e me apoiei em seu ombro pra poder ler o que ela escrevia.

"Quando eu e Engfa tínhamos 15 anos, perguntei a ela uma vez qual era seu maior sonho e ela me respondeu que era viajar pra Grécia com tudo pago. Pareceu bobo na hora, mas desde então, fiz do seu sonho o meu. Fazemos planos pra essa viagem há quase 10 anos, muito antes de sermos um casal. O que aliás, nem define o que nós somos. Somos complemento, colisão, equilíbrio, sinergia, fusão. Opostos complementares. Amor de alma. Melhores amigas. Nem acho que a gente mereça essa viagem mais do que os outros casais que devem se inscrever nesse concurso também. Mas eu não tenho dúvidas de que nós duas queremos esse sonho com toda alma. O sonho que era dela, mas que hoje é nosso."

Ler as palavras que Charlotte havia escrito sobre nós duas mexeu comigo de um jeito que eu não havia imaginado que seria possível. Sentia meu coração golpeando minha caixa torácica com tanta força que tinha certeza que Char poderia ouvir.

- Desculpa, Engfa. Você sabe que eu me embolo toda pra escrever, isso ficou horrível, vou apag...

- NÃO! - Levantei de seu ombro sobressaltada e afastei sua mão do teclado. - Não mexe, eu adorei.

- Sério? - Ela me olhava incrédula.

- Aham. Tá perfeito. - Me aproximei dela e deixei um beijo demorado em sua bochecha, que me puxou para um abraço em seguida.

Logo depois resolvemos revirar os arquivos do computador dela atrás de fotos e vídeos nossos para produzir o tal trailer que ainda precisaríamos para a primeira fase do concurso, além do questionário e do vídeo da nossa história. Perdemos horas mergulhadas nas nossas lembranças, revivendo vários momentos e felizmente, ou infelizmente, encontramos uma quantidade absurda de material no qual parecíamos ser um casal. Como foi que nenhuma de nós duas se deu conta daquilo antes?

- É, eu acho que nosso trailer está mais do que garant... - Interrompi minha frase com um bocejo escandaloso. - Desculpa, eu não dormi direito noite passada.

- Insônia, P'fa?

Fiz que sim com a cabeça.

- Foi por isso que eu saí do sofá ontem, fiquei com medo de te acordar também. Mas aí foi pior ainda, porque a cama estava fria e você quentinha, daí eu acordei de vez. Levei horas pra conseguir me desligar de novo.

- Acho que chega por hoje então. - Charlotte disse já guardando o notebook e entrando embaixo das cobertas. - Vem cá.

Entrei embaixo das cobertas também e me aproximei como ela pediu.

- Colchão frio não vai te dar insônia hoje. - Ela declarou já me puxando pra si e colando seu corpo às costas do meu. - Dorme bem, querida.

Pela segunda vez no dia eu quis declarar morte às borboletas pelo reboliço que elas causavam dentro de mim e achei que mais uma vez iria passar a noite em claro, e dessa vez não seria pelo colchão frio. Mas me enganei, em pouco tempo o calor e a respiração compassada de Lotte as minhas costas me fizeram relaxar em seus braços e senti minhas pálpebras pesadas. Fechei meus olhos, me permitindo viajar para a terra de Morfeu, desfrutando um sono pesado como há muito tempo não tinha.

Presente de GregoOnde histórias criam vida. Descubra agora