20 - O Delírio Sem Fim

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Eu não me lembrava de nada, nem mesmo sabia exatamente o que tinha acontecido. Eu sentia que não podia confiar em mim mesma, me olhava no espelho e o choque em meus olhos era a única coisa que me causava conforto, eu ainda era capaz de sentir medo. Minhas mãos estavam arranhadas, meu queixo, meus joelhos e meus cotovelos, era como se eu tivesse rolado ladeira abaixo. Eu não conseguia imaginar o que se passou nessa madrugada, ou como meu cabelo ficou sujo de terra e folhas mortas e secas, meu pai me ajudou a higienizar meus ferimentos e cobrir cada um deles com aqueles pedaços de panos, gazes. 

Sentada na beirada de minha cama, alisando os ferimentos cobertos, eu me olhava no espelho, encarando aquela figura limpa e cheirosa, mesmo que por dentro parecia estar tão podre, eu estava enlouquecendo e essa era a verdade mais pura. Ao ouvir meu nome ser chamado, por um momento pensei que seria melhor ficar em meu quarto e me isolar em meus pensamentos, porém eu não poderia me reprimir e esperar que a mudança seja feita. 

Me levantei cambaleando pelo quarto, indo em direção a escada, que parecia mais inclinada do que o normal, mas mesmo assim, desci de degrau em degrau, sem me segurar no corrimão, para impedir que o gaze em minha mão, estragasse. Ao enfim parar no último degrau, pude ver meu pai apoiando uma panela de pressão sobre a mesa, com tigelas de vidro em cada lado, olhei aquela panela, era um alumínio brilhante, pintado de cor vermelho fosco, era a cor favorita de meu pai. Não pude deixar de lembrar dos boatos que rolaram na morte de minha mãe, sobre a morte ter sido por conta da explosão do pino da panela de pressão, não consegui evitar pensar nisso, apenas pisquei os olhos e me aproximei, encarando aquela panela, como se eu fosse perder aquela sensação estranha só de me aproximar. 

- Liv. Eu fiz sopa de legumes e coloquei bastante feijão, você precisa ficar forte, meu amor. Está tão magrinha... - Ouvi a voz de meu pai soar distante, enquanto meus olhos estavam fixos na panela, meu corpo travou enquanto meu olhar absorvia de tudo o que podia, todas as sensações possíveis, porém ao sentir o toque das mãos quentes de meu pai em meus braços, consegui finalmente sair do transe, o olhando um tanto surpresa por aquela situação embaraçosa. - O que aconteceu? Por que você foi encontrada na avenida 435? Tem noção da preocupação que eu passei, ao saber? - Olhei nos olhos de meu pai, que subiu sua mão livre para meu rosto e alisou minha bochecha, o toque de seus dedos era tão delicado, mas tão intenso. Apertei meus lábios com força, tentando pensar no que exatamente eu iria dizer a ele, mas antes que eu pudesse tomar a frente, ouvi suas palavras novamente. - É o luto? Você está de luto, meu amor. - Foi aí que caiu a ficha, meus olhos desceram para minha vestimenta, calça moletom fofa e uma blusa de alcinha colada, também preta. 

- É, talvez seja por isso mesmo. - Um sorriso reto foi o que eu recebi, mas não me senti mal por isso, eu não queria falar daquele assunto e muito menos entrar na tristeza de ter perdido meu namorado. Apenas me afastei de meu pai para me sentar na cadeira, ao esticar a mão para pegar a concha, meu pai foi mais rápido e a segurou entre seus dedos, a afundou na panela de pressão e puxou uma grande quantidade de mini pedaços de cenoura, feijões e macarrão. Apoiando a concha cheia de sopa em minha tigela de vidro, ele enfim me olhou.

- Preferi colocar aquela linguiça com aipim, você gostava, lembra? - Levantei a cabeça para meu pai, ao sentir o cheiro forte da linguiça, estava misturado com vários pedaços de ervas, como tempero. Abri um sorriso casto, de agradecimento. Meu pai sempre se mostrava se importar comigo, se preocupar e sempre se lembrar daquilo que eu gostava, ele dava valor para minhas palavras e eu o amava por ser assim, tão presente em minha vida. Apoiei minha mão sobre a dele, por alguns segundos, enquanto tombava minha cabeça para a direita, o olhando com tanto carinho que por alguns segundos, esqueci que eu estava com um vazio na mente. 

A manhã foi longa, o sono fugia de mim a cada hora e era como se eu estivesse com pânico quando as árvores balançavam e os galhos formavam sombras em meu quarto, apenas quando a lua passava, me causando a sensação que eram garras para me ferir e me punir. Decidi me vestir com um vestido florido, amarelado com estampa leve, na esperança de que eu pudesse absorver aquela claridade boa, passei blush em minhas bochechas e um gloss para hidratar meus lábios, prendi meu cabelo em um coque alto e desci as escadas. Meu pai me esperava com uma jarra de suco de laranja e um bolo salgado de aveia, queijo e carne moída em pimenta, era assado. Meu pai era um homem de mão cheia na cozinha, com criatividade e sabor. 

Poderes De Outra Dimensão - 2ª TemporadaOnde histórias criam vida. Descubra agora