38 - Uma Trava Na Mente

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Meus olhos se abriram devagar, com a luz do dia iluminando o cômodo como se fosse um raio quente em meu rosto, eu não conseguia dormir com a claridade, isso já era um fato, então quando senti a escuridão se esvair, apenas espreguicei meu corpo, bocejando enquanto minhas pernas se esticavam. Arqueei as costas e me levantei devagar, por um momento pensei que eu fosse cair do sofá, mas estava macio demais para minha memória, meu corpo entrou em choque quando olhei ao redor e o telhado estava diferente, eu também não estava em minha casa.

Meu corpo estava embrulhado por um fino cobertor, deitada na cama de casal de Garrett, meu olhar disparou para o sofá, havia uma manta dobrada sobre o estofado, além do travesseiro deixado de lado, ele dormiu ali, longe de mim, para me dar o limite e o espaço que eu precisava, talvez se eu desse um passo além na noite anterior, ele teria dormido comigo, de conchinha, como quando morei com Samuel na cabana da floresta.

Me levantei ainda um pouco tonta, por estar sonolenta, a camisa de Garrett ainda estava em meu corpo, e pelo horário eu já teria logo de voltar para casa, decidi apenas me trocar, colocar o vestido que de manhã parecia mais folgado em minha cintura, o que me surpreendeu. Com passos cambaleantes, caminhei até o som de talheres batendo, provavelmente Garrett estava preparando o café da manhã, ergui os braços e prendi meu cabelo em um coque frouxo, tentando melhorar minha aparência de quem tinha acabado de acordar.

Depois da noite turbulenta, eu não sabia como falar com Garrett, ou como chamá-lo depois de saber os sentimentos dele por mim, eu ainda duvidava, mas tinha de lhe dar uma chance, acreditar que não era efeito do clima sexual. Ao parar na entrada da cozinha, meus olhos pararam sobre o garoto, que usava uma touca na cabeça, uma calça de moletom e uma regata branca, não consegui entender o motivo da touca, mesmo que estivesse tão calor do lado de fora da casa, me aproximei devagar, o olhando com um sorriso fraco nos lábios.

- Bom dia. - Dei a volta na mesa de seis cadeiras, parando logo ao lado do garoto, que misturava na bacia, polvilho com temperos, provavelmente na esperança de fazer panquecas ou tapiocas para o café da manhã, no fogão tinha uma chaleira, fervendo água para chá ou café. Ao parar ao lado do garoto, vi seu olhar descer para meu rosto com um sorriso gentil, parecia mais calmo de manhã, talvez até mais carinhoso, quando senti os dedos dele encostar em minha bochecha antes que ele mesmo se virasse em minha direção.

- Bom dia flor do dia. - Revirei os olhos com um sorriso se abrindo em meu rosto, dei um passo para trás conforme Garrett seguia mais perto para poder me abraçar, fechei meus olhos e deixei que ele rondasse os braços em volta de meu corpo, os dedos alisaram minhas costas nua do vestido, não me arrepiei como pensei que iria, ainda assim, me senti bem em estar ali, não tinha deixado tudo ir por água abaixo. - Gosta de camomila? Pensei que poderia combinar para uma manhã depois de beber vinho e comer tantos carboidratos de noite... - O comentário de Garrett soou divertido em meu ouvido, pendi a cabeça para trás, na intenção de olhar em seus olhos, sorri ladino, afirmando com um movimento de cabeça positivo.

- Sua mãe chega que horas? - Olhei ao redor, me afastando devagar daquele abraço, assim pude me apoiar no balcão americano da cozinha, enquanto Garrett despejava em colheres, a tapioca na panela de fundo preto, era baixa, perfeita para fazer cascas finas de polvilho recheado, sendo doce ou salgada. O garoto me olhou por sobre o ombro e riu baixinho, como se eu tivesse feito uma pergunta ingênua.

- Ela chegou depois que você dormiu, mas já foi embora, fim de semana o hospital fica mais cheio que o normal, provavelmente visitantes da cidade ou pessoas passando mal por bebidas alcóolicas. Ela disse algo sobre um acidente de ônibus que feriu alguns passageiros, então teve de fazer dobra do horário. - Garrett falava confortavelmente, para ele o assunto não o incomodava, não se sentia mal de que sua mãe não passasse tanto tempo perto dele, tinha de trabalhar como se sua vida dependesse disso, mas não, ela gostava. Olhando para a casa dele, eu via que não era por necessidade, ela trabalhava daquela maneira, por amor.

- Deve ser cansativo, ela não pode tirar um fim de semana de folga? - Perguntei apoiando meu queixo na palma da mão, assim podendo prestar atenção nos movimentos que Garrett fazia para virar a tapioca na panela, dourando o lado interno em que poderia colocar o recheio. Ele me olhou de soslaio mais uma vez, mas não sorriu, parecia uma expressão de ironia. - O quê?

- Minha mãe se preocupa mais com os outros do que com ela mesma, duvido que aceite um fim de semana inteiro para passar em casa descansando. - Seu comentário me fez apertar os lábios com força, abaixei as mãos e batuquei meus dedos no mármore claro do balcão, me sentindo incomodada em como o assunto pôde virar do avesso daquela maneira.

- Se ela pensa mais nos outros do que a si mesma, então ela deveria pensar em você também. Você pode sugerir levar ela para um museu, um parque, talvez um shopping. Ela pode gostar da ideia de passar um tempo com você, nem que seja para comprar algo, ou comer besteiras. - Sorri, repuxando os cantos de meus lábios para cima, assim deixando o clima mais leve, Garrett parou de passar a manteiga na tapioca e piscou devagar, talvez raciocinando minhas palavras, senti um clima pesado o rondar, mas ele não disse nada, apenas deu de ombros e sorriu sem mostrar os dentes. Foi aí que eu percebi que teria de parar de tocar no assunto sobre sua mãe.

Fiquei calada observando Garrett preparando o café da manhã, me apoiei no balcão de mármore escuro, havia um grande espaço entre nós dois, era como se eu quisesse que ele não viesse até a mim pra me dar carinho ou beijos, o que aconteceu ontem deveria continuar sendo apenas ontem. Então escutei a chaleira apitar.

O grito extremamente agudo e alto da chaleira, soava como um assobio em minha mente, imediatamente fechei meus olhos, sentindo uma trava na minha cabeça, essa que soou como um chicote, batendo no vento e cortando as moléculas de ar, soava como um trovão a cada linha que se desenrolava em minha mente, uma dor angustiante desceu de minha testa ate o nariz. Era como se um despertador soasse na minha mente, abri meus olhos de impulso, enquanto minha respiração ofegava, olhei para Garrett que parecia tranquilo enquanto colocava as ervas do chá na água quente, ele nem mesmo notou como meu corpo reagiu, o que me fazia perceber que era tudo coisa de minha mente.

Olhei para meus dedos apoiados no mármore, estavam duros e esticados, ao olhar para eles, abaixando a cabeça, senti um líquido grosso e quente escorrer de meu nariz, quando a gota vermelha pingou na pele de meus dedos, um frio na espinha me percorreu, imediatamente me virei de costas para Garrett, erguendo a cabeça e fungando o sangue de volta para dentro de meu corpo, passei a mão desesperadamente em meu rosto, limpando qualquer vestígio.

Olhei para o lado, vendo a porta da casa de Garrett, estava aberta, deixando o ar circular pelos cômodos, dei uma olhada de soslaio para o garoto que cozinhava, eu não poderia explicar nada disso para ele, apenas prendi a respiração e corri para a saída de sua casa, mas ainda pude escutar o comentário de Garrett.

- Olívia? Onde você vai? - O garoto me seguiu, mas como eu corria, apenas deixei com que ele falasse sozinho, para me deixar correr pela avenida, nem mesmo olhei para trás, mas eu saberia se ele viesse até a mim, eu precisava ficar sozinha, o quanto antes.

Corri como se minha vida dependesse disso, e dependia, pois eu sentia um laço percorrer meu corpo, em minha mente eu conseguia ver os flashbacks daquele anzol rodeando lentamente minha mente, eu tinha de contar para as meninas, antes que eu perdesse a oportunidade de lhes falar o que acontecia comigo.

Eu sabia que as pessoas me encaravam, curiosas e assustadas de me ver correndo tão assustada, minha pele ardia e provavelmente fedia ao suor, vermelha pelos movimentos bruscos enquanto corria, as coxas assadas pelo vestido que não protegia minha pele como deveria. Eu já estava no meu bairro, o que poderia me tranquilizar, mas quanto mais perto eu chegava de minha casa, mais rápido o anzol conseguia fisgar minha mente, eu sentia o ardor em minha cabeça, um ardor gelado como menta, mas incomodava como álcool na ferida.

Arregalei os olhos, sentindo minha visão escurecer no exato momento em que subi os degraus de casa, empurrei a porta para dentro e me joguei para dentro de casa, pude ver pela visão periférica a silhueta de meu pai sentado à mesa com Bennety e Ruby. Antes que eu pudesse falar alguma coisa, meu corpo despencou, caí de joelhos enquanto minha visão desaparecia, fechei os olhos com força e coloquei força em minha cabeça, prendendo a respiração como se fosse expelir qualquer sinal de Warren, as veias saltavam em meu pescoço e testa, poderia realmente explodir.

Então ele me controlou novamente.

Poderes De Outra Dimensão - 2ª TemporadaOnde histórias criam vida. Descubra agora