Capítulo 1

887 107 8
                                    

Talvez então eu morra
E não terei que enfrentar a realidade
Não é fácil encarar os fatos
Quando o seu mundo inteiro é negro
O mar não será mais verde
Ele se transformará em um azul profundo

The Rolling Stones - Paint It, Black

Oito anos antes

ESTAVA NA HORA de ir embora, pensou Theodorus Papadopoulos, enquanto retirava a única mala que possuía do balcão do pequeno hotel, em Desfina, em Phocis, no Sul grego. Após agradecer à senhora de meia idade pela hospedagem, ele pagou a ninharia pelo que tinha gastado e foi embora, saindo pela porta da frente do estabelecimento. Contudo, antes que fosse embora da cidade, ele se permitiu provar mais um dos pastéis da praça central da Desfina, que era dominada por vários perenes plátanos, os quais ofereciam uma excelente sombra. A típica arquitetura das casas era em branco e com telhados cor de terracota, situadas em quarteirões muito bem organizados.

No entanto, ele sabia que não tinha tempo para ficar observando maravilhado as características da cidade, com seus pouco menos de 2 mil habitantes ou, ainda, as ruínas da igreja histórica. Theodorus tinha pressa, muita pressa, antes que fosse preso e não pudesse continuar aplicando mais alguns de seus golpes. Após comer dois pastéis, ele se aligeirou e subiu em sua motocicleta, amarrando sua pequena mala ao sidecar. A motocicleta era furtada e era sua companheira de viagem enquanto vagava pelo país. Ele subiu na moto, ligou a chave e fechou a metade do zíper do casaco, sendo que, ali dentro, se escondia o dinheiro que ainda tinha.

O dinheiro o qual havia conseguido após lograr um mercador de barcos de pescaria, se apresentando como um intermediário para o carregamento de atherina, um peixe parecido com o salmão. O homem havia pagado o valor adiantado no dia anterior e era a obrigação de Theodorus, que se apresentou com outro nome, é claro, de trazer o carregamento. O problema era que o carregamento não existia. Theodorus vivia daquela forma, desde os 11 anos, quando havia deixado aquele maldito orfanato em Atenas. Ele não sabia de onde tinha saído, de nada mesmo, pensou, enquanto deixava o perímetro urbano de Desfina e ganhava a estrada rumo ao desconhecido. Nem sabia para onde estava indo, apenas seguia onde lhe fosse conveniente, como um nômade, um sem rumo. As memórias voltaram a assombrá-lo.

Se lembrava, com dor, de como havia fugido daquele maldito orfanato, talvez fosse o pior da capital grega. O local, ele soube mais tarde, que era clandestino e não tinha autorização do governo para funcionar. As condições eram péssimas: infiltrações, crianças desnutridas, com sede e com fome, piso rachado, paredes com mofo, brigas dos adolescentes, ainda piorava mais. Theodorus sabia que muitas crianças, como ele havia presenciado, chegavam no local dias após o nascimento, enfiados em fronhas ou embalados em caixas de papelão. Outras vinham jogadas das portas de igrejas, clínicas e centros de caridade, eram bebês abandonados e não-quistos. O pior eram as ameaças dos adolescentes. Theodorus se metia em brigas, era agredido, tanto pelos funcionários, quanto pelos abrigados. A comida era racionada e o tratamento, malíssimo.
Mais uma vez, Theodorus afastou aqueles pensamentos desagradáveis. Agora, a vida era outra e ele sentia que poderia ter a chance, talvez, de dar um golpe monumental em alguém e ficar muito rico. Deixando a cidade, ele ainda viu as ruínas do mosteiro de Agios Ioannis Prodromos e a capela Toriarches, que ficavam nas proximidades, locais de fé que eram antiquíssimos e construídos totalmente em pedras rudimentares. Alguns fios de seu cabelo longo e a barba loira e comprida eram balançados pelo vento forte, o qual batia contra seu rosto, apesar de usar capacete naquele momento. Os olhos azuis registravam cada parte bonita daquela paisagem que se seguia. Nas proximidades de Parnasso, a cadeia de montanhas sagradas, ele observou o monte Kirfis, em todo seu esplendor e pelas pilastras antigas que podiam ser vistas de longe, resultado de milhares de anos de história relacionados ao Oráculo de Delphos.

Theodorus trafegou rumo a Astakos, uma outra cidade portuária e que dava acesso às Ilhas Jônicas. Por quase duzentos quilômetros, ele continuou a vislumbrar a imensidão azul sem fim e a sentir a brisa marítima contra si. Teve de parar para abastecer em um posto de combustíveis à beira de estrada para encher o tanque da motocicleta, aproveitando para comer algo e seguiu viagem por mais um tempo. O dia estava escurecendo e ele preferiu parar novamente, mas, desta vez, para dormir e pensar a que lugar gostaria de ir, já que as Ilhas Jônicas tinham mais de 30 ilhas. Primeiramente, ele decidiu que visitaria Astakos, seguiria para Lefkada e, depois, iria para Meganisi, uma ilha pequeníssima. O albergue à beira de estrada era simples e recebia os caminhoneiros que viajavam pelas estradas gregas e, assim, Theodorus não podia esperar muito luxo por parte da hospedaria. Contudo, cansado como estava, de horas conduzindo aquela moto, a única coisa em que pensava era em tomar um banho quente e pousar a cabeça no travesseiro. E foi exatamente o que ele fez após se registrar e ir em direção ao quarto indicado.

No dia seguinte, ele tomou café da manhã, se alimentando de pedaços de melão, pêssego e tomando um pouco de iogurte natural. Ele pagou pelo pernoite e seguiu viagem. Theodorus subiu na balsa, se apoiou no suporte aos passageiros e vislumbrou a vastidão do Mar Jônico. À medida que se aproximava de Astakos, Theodorus avistava a magnitude do Monte Veloutsa e os pequenos barcos de pesca que ladeavam todo o porto. Desceu do ferry-boat e conduziu a moto pela passagem de paralelepípedos irregulares. A cidade portuária de Astakos era conhecida por dar acesso às Ilhas Jônicas por meio das grandes balsas e por vender às grandes metrópoles as culturas de trigo, milho e uvas. A pescaria no interior da cidade era, no entanto, a principal fonte de renda da localidade. Observou os pitorescos barcos de pesca, atravessou as ruelas empedradas e viu os pátios floridos das casas, as quais foram construídas na encosta da grande montanha.

Certamente, arrumaria uma hospedaria novamente, já que a cidade tinha muitos turistas em pleno outubro, mas corria o risco de não encontrar vagas também. O toque poético na paisagem pitoresca era o moinho de vento e o cenáculo, na entrada da cidade, no fundo da baía. Theodorus encontrou um quarto em uma simples pensão para pescadores, que os recebia na alta temporada de pesca, mas, mesmo assim, o local era de estilo neoclássico bem conservado, como as edificações do porto, mas também os do mercado e da praça. Muitas das casas de Astakos, testemunhando uma era próspera, apresentavam belos afrescos no interior, tetos decorados com ornamentos e detalhes decorativos notáveis. Theodorus gostava também de explorar a natureza e, no outro dia, após encontrar um quarto pequeno na pensão para pescadores, para apenas um ou dois dias, procurou a sombra de um grande bosque para refrescá-lo.

O carvalhal que cobria uma área de milhares de hectares era um dos únicos da Europa que tinha as espécies de carvalho mais raras do mundo, conforme Theodorus tinha ouvido um pequeno comerciante relatar. De fato, no passado, Astakos havia sido importante centro comercial para a exportação de carvalho, enquanto a espécie de madeira abastecia as cargas para a Europa durante muitos séculos. Aliás, essa tradição portuária se devia à estratégia de estar nas proximidades das importantes Ilhas Jônicas, assim como de ser a porta de entrada para o tráfego, hodiernamente, entre a União Européia e o Oriente, ligando o Mar Adriático, os Bálcãs e o Mar Negro. Theodorus deixou o carvalhal e foi a uma taberna localizada em frente ao porto entre Anarkadia e Eptanisa, encontrando um grupo de homens que bebiam cerveja, jogavam com cartas e batiam papo.
As cadeiras de madeira pintadas de azul e a mesma cor nas portas davam um colorido especial ao recinto, além das várias espécies de plantas que o ornamentavam. Vendo aquela como uma oportunidade de ganhar um pouco mais de dinheiro, Theodorus resolveu participar do diloti, o tradicional jogo de cartas, levando as táticas de trapaça que aprendeu nos difíceis tempos que viveu nas ruas atenienses. O jogo era intrigante e o jogador devia se concentrar em colecionar, ou pescar cartas para ganhar pontos e dinheiro.

Alcançado pelo Destino - Série Fascínio Grego - Livro I (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora