69_ Sim, Sophia

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Estava quase na hora do sol se pôr quando decidi ir correr na Bela Vista, naquele domingo. Bela vista era o bairro onde eu morava, só que eu morava numa das pequenas ruas, não na principal, que era uma rua reta onde as pessoas costumavam caminhar e correr.

Eu não era muito de correr, já que fazia meus exercícios em casa, mas queria aliviar um pouco a minha mente e me distrair.

Coloquei a minha roupa de treino, fiz duas tranças embutidas no cabelo, coloquei o fone no ouvido e saí para correr.

Fui até o final da Bela vista, correndo e descansando em intervalos curtos, sem parar de andar. Depois fui até o centro da cidade, que era a outra " ponta " da Bela Vista e no final decidi parar na Mister Pão, uma padaria que tinha no caminho.

Entrei para comprar uma água e me sentei numa das mesas que tinha na área de fora. Nessa hora já estava praticamente de noite. O frio que vinha com o anoitecer já batia e isso era ótimo, porque eu estava morrendo de calor pelo exercício.

ㅡ Filha? ㅡ Estava bebendo a água da garrafa quando ouvi aquela voz familiar. Olhei para o lado e ali estava ela, vestindo o uniforme da padaria e com um pano para limpar as mesas.

Eu não consegui responder. Fechei a garrafa com a tampa ainda prendendo um pouco de água na minha boca, talvez por medo do que eu poderia dizer ou só para não ter a pressão de que tenho que realmente dizer algo agora.

Encarei a garrafa por uns segundos, mas me obriguei a engolir o que estava segurando quando percebi que ela continuaria ali esperando uma resposta minha.

A olhei, apenas para pensar no que responder, mas só com o meu olhar, ela já sorriu se aproximou, como se eu tivesse dado entrada ou coisa parecida.

ㅡ É tão bom te ver, eu... ㅡ Ela parou na frente da minha mesa e disse aquilo com um sorriso estranho no rosto. Minha mãe sempre teve um sorriso... Elegante. Nunca soube como, mas sempre que ela sorria, era um sorriso bonito, elegante e do tipo que uma pessoa daria numa festa importante com pessoas importantes. Mas, aquele sorriso... Aquele a deixava com uma careta. Seu rosto enrugava. Suas sobrancelhas franziam. Parecia ser o único sorriso de verdade que vi no rosto dela durante toda a minha vida. Porém, mesmo assim, eu não conseguia me comover ou coisa parecida. ㅡ Eu mudei. ㅡ Declarou. ㅡ Arrumei um emprego, aluguei uma casinha melhor, não me envolvo mais com ninguém e tudo que eu peço é uma segunda chance com você.

Parei de encara-la. Parei porque eu era coração mole demais e poderia dizer algo que eu futuramente me arrependeria. Eu não estava pronta para isso. Eu já tinha perdoado ela, ou ao menos estou me esforçando para não sentir nada com relação a ela. Sinto que se a tivesse de volta na minha vida, não conseguiria esquecer o passado. Não viveria em paz.

ㅡ Talvez um dia eu esteja pronta pra te olhar sem me sentir mal... ㅡ Ela concordou com a cabeça. ㅡ Mas, esse dia não é hoje. ㅡ Me levantei da cadeira e peguei a garrafa d'água. ㅡ Preciso ir. ㅡ Deixei uma gorjeta sobre a mesa e saí da padaria, voltando para a calçada e voltando a por os fones de ouvido.

Caminhei até em casa e tirei o fone assim que passei pela porta. Acendi as luzes, subi até o meu quarto e fui direto na direção da minha cama. Me abaixei, puxei a caixa que estava lá e me sentei na cama com a caixa na minha frente.

Fazia um tempinho que eu não olhava as coisas que tinham ali. Era meio que o meu lugar de guardar lembranças. Tinham lembranças da época da escola, de eventos que participei com a CA, da minha família, das minhas conquistas e tudo mais. Eu estava precisando atualiza-la, na verdade.

Procurei o bilhete que Trevor mandou junto das jujubas e coloquei ali dentro, separei umas fotos para revelar, do festival nos Estados Unidos, dos eventos desse ano e dos momentos com o pessoal no sítio.

Estava sorrindo olhando as coisas ali dentro quando vi o que estava procurando.

Puxei a carta feita de folhas de caderno e afastei a caixa de mim. Abri a carta e facilmente reconheci a minha letra horrível de adolescente que eu tinha. O papel estava amassado e tinham manchas, certamente das lágrimas de quando eu estava escrevendo.

" Querida Sophia do futuro, espero que você esteja melhor do que eu estou agora. Estou escrevendo isso porque não sei com quem conversar. To sozinha em casa. Mamãe foi para uma " reunião " de negócios, que são, na verdade, as festas com champanhe e vinho entre ela e os mais ricos da cidade. Sei disso porque fui em uma e odiei. Parecia até que eu estava numa sala cheia de clones da mamãe.
Enfim, hoje pode ter sido o pior dia da minha vida. Ou do ano, não sei. Os meus dias não tem sido bons o suficiente para que eu consiga escolher facilmente o pior deles.
Convenci a mamãe a me deixar fazer uma audição na CA, um estúdio de dança enorme que tem na cidade. Ela vive dizendo que não sou boa em nada, que não faço nada direito que sou um encosto na vida dela, então quis provar que poderia ser boa em alguma coisa.
Gosto de dançar. Não sou profissional e nunca fiz aula, mas amo aprender coreografias e acho que sou boa nisso.
Só que... Eu não passei. Eu me esforcei muito, tentei dar o meu melhor, mas outras pessoas foram melhores que eu e eu não consegui nenhuma vaga.
Mamãe me humilhou tanto. Eu pensei até em mentir para ela que tinha passado quando cheguei em casa. Quis dizer que eu era, sim, boa em algo e que tudo que ela falava sobre mim não era verdade. Mas, ela descobriria uma hora ou outra que eu não tinha passado. E pior do que ser chamada de inútil, é ser chamada de inútil e mentirosa.
Ela disse que eu não presto pra nada. Que nunca vou ser ninguém na vida. Que eu não vou bem na escola, que eu não sou boa em fazer amigos, que não tenho nenhum talento e que nem pra puxar a beleza dela eu consegui.
Eu to me sentindo horrível. To dentro de uma casa gigantesca, rodeada de coisas caras, mas me sinto horrível. Na verdade, estar cercada de coisas caras só piora a situação, pois sinto que essas coisas valem mais que eu.
As roupas que tenho, os aparelhos eletrônicos, os sapatos, as bolsas, os móveis, os vinhos no armário, as jóias da mamãe... Tudo aqui parece valer mais do que eu no momento.

Sophia do futuro, diz pra mim que você é feliz. Diz pra mim que você descobriu que é boa em algo. Que um milagre acontece e, de repente, as pessoas gostam de você. Diz que você pode dançar sem sentir que isso não é algo que você gosta, mas nem isso faz bem. Diz que você superou tudo isso. Que você achou o seu propósito e que não se sente mais uma inútil. Diz que a mamãe reconheceu o seu valor e que você não precisa mais se humilhar para tentar conseguir o orgulho dela. Por favor... Diz que tudo mudou. Que você trabalha em algo que ama e é boa nisso. Que encontrou alguém que gosta de você e te coloca para cima, ao invés de para baixo. Que você tem paz. Por favor. "

Lembro que parei de escrever nesse momento porque estava chorando demais para conseguir enxergar.

E eu estava assim agora novamente. As lágrimas molhavam o meu rosto e caíam na carta, a manchando mais ainda. Só que não eram de tristeza, como no passado. Era de alegria. Alegria porque eu podia responder para a Sophia do passado que sim. Sim, eu era feliz. Sim, eu tinha alguém que me amava. Sim, eu trabalhava com o que gostava e era boa nisso. Sim, eu não me humilho mais para conseguir o orgulho da minha mãe. Sim, eu não me sentia mais uma inútil. Sim, eu tinha paz. Sim, eu tinha superado.

Abracei a carta e fechei os olhos.

ㅡ Sim, Sophia. A gente é feliz hoje. ㅡ Falei me meio as lágrimas.

•••
Continua...

Te Pedi para a Estrela CadenteOnde histórias criam vida. Descubra agora