eu vou ler um pouco

836 156 203
                                    

Deslizo os dedos pelas teclas do piano quando Minho aparece-me vestido vindo do andar superior. Senta-se ao meu lado, observando como toco, sentindo a melodia. Faço uma pausa para encará-lo, uma vez que está bem pertinho de mim e pousou o rosto no meu ombro. Engulo em seco porque ele está lindo. Aparenta leve sonolência, daquele tipo que sabe-se que irá dormir em breve, mas que ainda tem um pouco de tempo em pé para fazer mais coisas.

— Depois daqui a gente dorme, ok? — afago seu queixo, podendo sentir um pouco dos pelos crescendo.

— Uhum — concordou com a cabeça. — O ruim é que passamos o dia separados e quando nos vemos estamos cansados...

— É, de fato — volto a encarar as teclas do piano.

Recomeço uma das canções que estive apaixonado quando ainda estava nos primórdios dos meus estudos de piano. Minho gosta, porque acompanha meus dedos sem cessar e acaricia minha nuca. Seu silêncio é como poesia, é saber que ele está bem e feliz. Agora, bem quieto, pequenino, as pernas grudadas e os olhos grandinhos pela curiosidade.

— Espera aí — ele levanta de repente e sobe as escadas.

Eu giro o corpo para olhá-lo quando for descer. Estalo os dedos enquanto espero. E ele vem devagar com o bullet journal nas mãos, folheando, procurando algo. Retomo a canção, ainda que ele não tenha sentado ao meu lado outra vez. Sinto quando deixa um beijo no topo da minha cabeça — certamente faz-me errar duas notas — e quando viro-me para vê-lo, já está distante com os olhos nas páginas.

— Eu vou ler um pouco — é o que me diz.

— Eu continuo tocando ou...

— Pode tocar — aproxima-se de mim para acariciar meu cabelo.

Ele limpa a garganta e, puxando meus fios pela raiz, começa:

"nas relvas me esticarei,
meus pensamentos em ti
tu era ardente e fez mal
e eu, tirado a astrônomo,
lhe apelidei estrela, o sol ou marte
e queimei-me sem querer

nas relvas me esticarei
meus pensamentos em ti
almejei a paz de um lar tranquilo
ameno, colorido e simplório
e quando eu me sentir bem
quando sentir bem outra vez
quero lembrar de quando não
estive nem um pouco bem

nas relvas me esticarei
meus pensamentos em ti
o corpo pesado,
uma existência sem sentido
e teu sorriso inquilino
que atrasa meu lado
quando tanto preciso

nas relvas me esticarei
meus pensamentos em ti
desenhei saturno e urano
mas nada fez tanto sentido
quanto deitar nas relvas contigo
e traçar seus dedos nos meus
como se fosse tu o meu deus
e eu um humano miserável

nas relvas me esticarei
meus pensamentos em ti
na tua pose, no teu ego torto
tu borda palavras de consolo
por ter partido
e nas relvas estico-me só
sem saber de nada senão desistir
eu busquei tanto a tua chama
que queimei-me sem querer
e levei comigo as gramíneas
elas não tinham nada a ver
com isso..."

— Tá inacabado — conclui a declamação. — Outro dia ajeito algumas pontas soltas e tento dar um fim ou chegar a uma conclusão.

Tiro os dedos do piano assim que ele senta-se ao meu lado. Lhe conforto com palavras doces de incentivo. Ele sorri meneando a cabeça, agora decide brincar um pouco com o instrumento. Vejo o bullet journal sobre o piano, junto com minhas partituras, e fico tentado a pegar para analisar direito o texto que acabou de ler. Mas fico quieto, uma vez que não sei se ele ficaria confortável ou não.

Brinco com seu cabelo enquanto ele finge tocar piano. Eu assanho seus fios por pura diversão; ele faz uma música com duas notas e o mesmo número de palavras. "Don't cry" (não chore) é o que repete durante seu momento musical. Como ele está se divertindo, apenas fico contemplando seu semblante sorridente. Enfia uma terceira nota e repete a melodia umas três vezes só para achar uma versão permanente.

thé et fleurs • minsungOnde histórias criam vida. Descubra agora