Capítulo 26

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Jhony

Seus olhos acenderam feito tochas e ela se levantou em um movimento desconjuntado.
— O que você falou?
Fiquei bastante receoso em repetir e parecer um bobo. Eu pensei demais, por consequência, falei demais. Afinal, só demos um beijo aqui e outro ali, e mesmo que tenha ficado subtendido que estávamos deslumbrados um pelo outro, não dissemos qualquer palavra sobre compromisso ou repetir aquelas doses de carinho amanhã e depois de amanhã e depois... Como eu poderia pensar tão precocemente em falar com seu pai? Eu não devia sequer cogitar essa possibilidade antes de amadurecermos para nós mesmos, a ideia de que porra estava acontecendo com a gente.
— Disse que estou cansado, que foi uma noite longa e é melhor a gente ir — desconversei.
— Mentirosooo! — saltitou na minha frente como uma pulguinha. — Você disse claramente que me quer para você e acho que falou algo sobre pedir a benção do meu pai. Não foi? Que fofo.
Praguejei. Rir da cara dela me ajudaria demais a eliminar qualquer chance de parecer patético, mas minha reação tímida fez tudo ir por água abaixo. Com um calor subindo pela face, fui pegar sua mochila perto do balanço para escapar daquele olhar desafiador acompanhando cada movimento meu.
— Não falei nada disso, você tá doida. Acho que seu juízo saiu no vômito, é melhor ir lá procurar, hein — fui cínico. Joguei sua bolsa no meu ombro e não olhei para seu rosto cheio de piadinhas conforme eu me dirigia para a saída do parque.
Gabrielle disparou na minha direção, barulhando com seu tênis na altura dos tornozelos. Deixei me alcançar. Pelo seu nível de confiança e pentelhice, deduzi que o mal-estar havia passado por completo. Agora ela estava pronta para revirar meu estômago de ponta cabeça.
Nana nina não. Sei muito bem o que ouvi, só queria que repetisse porque achei fofo. Mas você é orgulhoso demais para admitir duas vezes que me quer. — Não era orgulho, era uma confusão de medos e traumas de uma pessoa acostumada a ser passada para trás. Revelar meus sentimentos era algo com que eu ainda estava tentando aprender a lidar. — De qualquer forma, acho que é melhor não falarmos com o meu pai por enquanto.
Apesar de ruborizado, girei o queixo na sua direção e minha sobrancelha arqueou. Mesmo que eu próprio pudesse listar pelo menos dez motivos para guardarmos segredo do seu pai, queria ouvir os seus.
— Por que?
— Ele tem a mente muito fechada quando o assunto é garotos. Se a gente contar que tem algo rolando entre a gente, ele colocará vários limites. Você não poderá mais ir lá em casa sem que ele esteja e nunca mais teremos a oportunidade de ficarmos sozinhos. Ouso até dizer que nem voltar da escola com você ele deixará. É muito arriscado. A gente não teria sossego.
Coloquei as mãos nos bolsos da frente da calça e comecei a chutar uma tampinha de garrafa que encontrei pelo caminho.
— Você não acha que se ele descobrir acidentalmente pode ser pior?
— Com certeza — concordou e começou a refazer o coque nos cabelos que se desmanchavam pelos ombros. — É por isso que seremos cuidadosos de agora em diante. Pra começar, nada de querer beijar meu sovaco em um parque de diversões.
— Ah, entendi — soltei uma risadinha atrevida. — Você pode me roubar um beijo no meio da escola, mas a minha tara inocente por suas axilas é o nosso maior problema?
Ela tirou a tampinha do meu pé e brincamos de passar de um para o outro durante o trajeto.
— Tem razão. Melhor entrarmos em um acordo de nada de beijos em público — concordou. — Em nenhuma parte do corpo, ouviu? — retificou.
Meus olhos encontraram os seus brevemente. Ela acabou de determinar que escondidos nos beijaríamos mais vezes? Eu não estava nem um pouco preparado para isso, mas eu queria tanto, que meu peito inteiro latejava.
— Claro. Tentarei manter minha boca longe dos seus sovacos perfumados e macios — chutei a tampa para ela.
— Jhonathan!!! — chutou de volta com irritação. — Se você não parar com essa bizarrice, juro que nunca mais te verei de manga curta. Vou me cobrir inteira com aquelas... Como é mesmo o nome daqueles panos enormes que as indianas usam?
— Burca? — voltei a tampa para ela. Ela confirmou. — Não são as indianas que usam, mas as muçulmanas em alguns países islâmicos.
— Isso, é... Tanto faz. Vou usar burca e você só verá meus olhos.
— Eu sou muito a favor de você usar burca. Facilitaria horrores a minha vida. Mas nós dois sabemos que você gosta é de dificultar.
Ela chutou a tampinha para o esgoto de repente e rodopiou com graciosidade para começar a andar de costas.
— Mudando de assunto, você não está esquecendo de me dizer nada?
— Tipo o que?
— O que você não deixou Marcelo me contar naquela hora, ué. — Gesticulou um dedo com determinação. Tive que lutar contra o impulso de pegar aquele dedo e morder todinho. — Não achou que eu esqueceria, né?
Eu não teria essa sorte.
Meus olhos percorreram o concreto da calçada enquanto me perguntava por onde começaria a explicar. Impulsiva do jeito que era, uma frase não tão bem planejada podia fazer com que Gabrielle quisesse correr de volta para a casa do Danilo e acertar as contas com a Carol.
— Não é nada demais — tentei amenizar o dano encolhendo os ombros e soltando. — É que a Carol deu a entender para algumas pessoas que nós ficamos.
Ela colocou a mão no meu peito com a intenção de me parar. Eu parei. A luz da Lua e da rua iluminavam suavemente seu rosto.
Me lançou um olhar. Aquele olhar.
— Nós quem?
— Eu e el...
— Você e ela!?
Meu sangue congelou.
— Eu e ela — confirmei.
— Como é? — Ela engoliu em seco. A saliva pareceu descer pesada. — Como assim ela deu a entender? O que foi que ela disse!?
Gabrielle ficou observando enquanto eu fazia um cálculo imaginário. Eu a conhecia bem o bastante para saber que ela piraria se soubesse que a Carol disse coisas bem exageradas sobre mim. E nem era tanto por ciúmes, era porque nos protegíamos. A gente cuidava um do outro e ter alguém contando mentiras a meu respeito, era algo que ela sabia que me deixava maluco.
— Não importa os detalhes. Amanhã eu resolvo. Mas essa história me fez pensar em uma coisa. — A puxei pela mão para voltarmos a andar. Estava ficando bem tarde, São Paulo costumava ser perigoso até pela manhã. — Você disse que viu eu e ela conversando, né?
— Disse.
— Ela também te viu?
— A-acho que sim — pensou melhor, o olhar perdido no horizonte. Passou a língua no cantinho da boca. — Viu sim. Claro que viu. Um pouco antes de vocês se abraçarem, ela trocou um olhar comigo, mas eu estava tão cega de raiva, que nem dei importância. Por que? No que tá pensando?
— Que foi muito do nada que ela me pediu por um abraço. Estou com uma sensação incômoda de que fez de propósito. Acho que ela te viu e quis provocar ciúmes.
Gabrielle fez uma careta. Os olhos de uma escuridão letal se apertaram.
— Me provocar...ciúmes!??
— Ela veio perguntar se tinha algo rolando entre a gente e apesar do meu esforço em negar, ficou na cara que ela não comprou a história. Acho que já estava meio desconfiada e depois de ter visto a gente no quarto, ficou ainda mais. Talvez ela quis tirar à prova e aproveitou a oportunidade. Viu você nos observando e me abraçou.
— Nossa, não acredito. Por isso ela me atacou dizendo aquele monte de baboseiras? — Confirmei. — Na hora achei que estivesse zangada pelo lance da bebida, nem se passou por minha cabeça que podia ser desconfiança. Agora tudo faz sentido, essa raiva repentina, dizendo que a apunhalei pelas costas... Nossa, mas se ela fez tudo isso para causar algum tipo desentendimento entre a gente ou sei lá, então essa menina é uma psicopata.
— Nem todo vilão se veste de vilão, né? — Relembrei sua frase de anos atrás e isso foi suficiente para dissipar a névoa de violência se instaurando. — Amanhã eu converso com ela e resolvo. Não se preocupe com isso. — Parei de andar. Me virei de frente para ela e estendi a sua mochila. — Chegamos. Agora que está entregue e segura, vá dormir e tenha bons sonhos. — Indiquei a casa rosa às suas costas.
Ela deu uma olhada por cima do ombro. As luzes da cozinha estavam acesas, indicando onde seu pai estava.
Voltou um olhar intimidador para meu rosto e cruzou os braços se recusando a pegar a bolsa.
— Bons sonhos? Como vou dormir agora que sei que essa hiena fez tudo isso para me atingir? Você devia ter me explicado antes, eu teria confrontado ela na hora. Odeio ser atacada sem poder me defender.
— Você bateu nela.
— Mas eu bati por causa da camiseta.
— E é um soco por cada motivação? — Eu estava contendo uma risadinha de escárnio e olhando para ela.
Ela me retribuiu o olhar como se eu não pudesse entendê-la.
— É.
Estufei o peito e soltei o ar devagar.
— Cara, você me convenceu a não brigar, até me ameaçou. Aí no minuto seguinte, rolou no chão com a menina que mais cedo me apresentou como amiga e sugeriu que eu me aproximasse. Você é uma contradição, Gabrielle. Deve ter umas quatro personalidades morando nessa cabecinha.
— E você acha que planejei isso? — questionou me analisando de cima a baixo. — Acha que eu queria terminar a noite com uma briga e começar meu ano letivo sendo odiada por minhas novas amigas? Eu só fui pra cima, porque a Carol deu a minha camiseta para alguém ciente de que eu precisava dela para voltar pra casa. Ela quis me ferrar de propósito!!!
— E mesmo sabendo disso, você caiu na pilha.
— Ela passou a noite me provocando, caí na pilha mesmo. Agora tá na cara que só me atacou porque gosta de você e acha que eu também gosto.
— E não gosta?
Eu aparentemente atrapalhei seus sentidos.
— Gosto...
— Então por que tanta raiva se o que ela pensa está certo?
Deu passos para trás e eu dei passos para frente. Pude assistir os movimentos mornos da sua respiração quando suas costas trombaram com um obstáculo. O muro da sua casa. Eu mantive uma passada de distância só por precaução.
— Por que? Por que!? — Me fitou como se estivesse prestes a entrar em um campo de batalha. — Porque é um erro ela achar que estamos em uma competição por você, quando não estamos. Você já é meu.
Sorri, aliviado porque ela simplesmente continuava afirmando que me queria para ela quando todos os outros fizeram questão de me esquecer.
— E esse não seria mais um bom motivo para você ir dormir e ter bons sonhos?
Seu queixo tremeu. Se queria rir ou me morder, eu não tinha certeza.
E nunca descobriria.
— Vocês chegaram. Até que fim.
Gabrielle e eu erguemos a cabeça no ato.
— Pai!
Meu Deus, seu pai estava debruçado no muro de casa e olhava para baixo, para nós. Me preocupei por um momento de ter nos flagrado e ouvido aquele papo íntimo. Preocupei de que soubesse que fui um ingrato com ele e fiz coisas horríveis com sua filha. Preocupei que o nosso plano de manter segredo tivesse acabado de ruir.
Mas como ele abriu um sorriso ao me ver, tentei acalmar meu coração a não parecer suspeito.
— Oi, Jhony — disse com um sorriso de orelha a orelha.
— Boa noite, tio Carlos.
— Acabei de aquecer strogonoff de frango. Quer jantar com a gente?
Ele não estaria me convidando para comer se estivesse querendo me matar. Certo?
A última refeição? Pode ser.
Engoli em seco, e apesar de estar em uma distância boa de Gabrielle, recuei discretamente um pouco mais.
— Minha avó está me esperando com comida pronta. Fica para a próxima. Muito obrigado, tio. Só vim entregar essa moça em casa. Boa noite para vocês.
Eu literalmente joguei a mochila em Gabrielle e saí correndo.
Casa. Eu preciso ir para casa.
***
As cinco e quarenta o despertador tocou e a ressaca foi a primeira a me dar bom-dia. Virei de um lado para o outro na cama, deitei de bruços e cobri a cabeça com o travesseiro. Talvez Joana pudesse faltar na escola hoje. Ela não ficaria mais burra por causa disso. Talvez eu pudesse dar aulas particulares a partir de hoje... Eu era inteligente. Todos diziam que eu era inteligente.
Mas e se não passasse de um burro convencido como Gabrielle chamou Danilo?
— Dony? Dony, acorda. A gente vai se atrasar — senti a pequena mão me sacudindo de um lado para o outro. Senti a cabeça rodar. — Doooonyyy!!!!!
Ela tirou o travesseiro cobrindo a minha cara e usou dois dedos para erguer minha pálpebra.
— Você morreu?
— Infelizmente...não — disse entrecortado, ainda de olhos fechados. — Vai tomar banho. Vou levantar já, já.
— Você tá com cheiro estranho — senti o colchão afundar um pouquinho quando ela subiu com os joelhos na cama e me farejou. Sua respiração fez cócegas na minha nuca. — Você não tomou banho? Hun!!!! Seu porco. Vou falar pra vovó e pra Gabi que você não toma banho. Eca. O Dony não toma banho, lá, lá, lá.
Ela estava certa. Meio certa. Eu não tomei banho ontem. Acho que passei tanto estresse noite passada, que quando cheguei em casa, a exaustão me pegou de jeito. Sério, atravessei a porta como se tivesse chumbo nas pernas e me sentei à mesa da cozinha para ouvir vovó perguntar ansiosamente como foi a festa. Poucas coisas a deixavam tão realizada quanto ver seu netinho se comportar como um garoto comum.
Então com a cabeça apoiada na mão, e entre bocejos discretos, me esforcei em contar o básico e nada comprometedor só para a alegrar. Ela me ouviu enquanto o prato girava no micro-ondas esquentando a minha comida. No que dependesse de mim, comeria fria. Melhor, nem comeria. Iria direto para a cama e só acordaria no dia seguinte. Mas ela insistiu em colocar para aquecer, para que eu comesse tudo quentinho, e esperar.
Depois de jantar, me despedi da vovó com um beijo na testa, subi para o quarto e deitei na cama com a promessa de que seria por cinco minutos.
Quando vi, era manhã e uma luz intensa e rajadas de vento batiam na minha janela.
Voltando ao presente, me apoiei nos punhos e sentei na cama sobre os calcanhares em um impulso. Cheirei minhas axilas. Puxei a gola e também cheirei. A camiseta estava uma inhaca, um cheiro ácido, azedo, misturado a lavanda, mas eu não fedia a estrume como Joana fez parecer.
— Eca? — Me virei para ela. Um rostinho inchado, sonolento, com remela acumulada no cantinho dos olhos. Os cabelos castanho-claros presos em duas trancinhas feitas pela vovó. — Eca??? — A derrubei na cama e comecei a fazer cócegas na lateral do seu corpo magricelo. — Você disse eca para mim, sua porquinha?
— Aaaaaah... Paraaaa... Donyyyy — caiu na risada, se remexia toda para escapar.
— Fala eca pra mim de novo, atrevida. Eca, digo eu, que fui obrigado a limpar seu cocô, sua cagona. — Voltei com as cócegas por sua cintura e ela se contorceu se divertindo. — Vou falar pra todo mundo que você fazia cocô colorido.
— Eca, eca, eca — provocou, empurrando os calcanhares no lençol enquanto se contraía. — O Dony é um porco. O Dony é um porco.
Estiquei seu braço e comecei a mordiscar levemente, imitando o rugido de um Leão. Joana ficaria dolorida com tantas gargalhadas. Uma gargalhada tão ingenuamente doce quanto a da Gabrielle ontem. Isso era amor para mim. Isso era família. Fazer minhas pessoas favoritas rirem.
— Eca... Aaaaah... Eca — continuou, entre pausas para respirar.
Suas gargalhadas soavam cada vez mais escandalosas, começou a me preocupar. Shhh!! Foi impossível não acender uma luz de alerta na minha cabeça. Nossa mãe dormia no quarto ao final do corredor e, embora as portas estivessem fechadas, talvez pudesse nos ouvir.
Se nos ouvisse, teríamos problemas.
Eu ficava muito triste quando lembrava que os remédios controlavam suas crises, mas não havia remédio no mundo que transformasse uma mulher implicante e cruel, em uma mãe boa e amável.
Não podíamos ser barulhentos.
Isso incluía brincadeiras, televisão alta, risos – ela detestava, em particular, minhas risadas – ou qualquer atividade que demonstrasse o mínimo de bom humor. Passava boa parte do seu dia enfurnada naquele quarto, mas quando saía e trombava conosco, fazia questão de demonstrar o seu desprezo. Às vezes bastava um olhar lançado na nossa direção, outras, esse olhar vinha acompanhado de comentários maldosos e insensíveis. No pior das hipóteses, tapas. Ela não triscou um dedo na caçula depois daquela vez quando era bebê. Quanto a mim... Houve alguns episódios que, graças a todos os traumas que me fez sofrer antes, eu considerava até pequenos.
Fui consumido por uma sensação de frio. Minhas mãos perderam a força e a brincadeira chegou ao fim.
Olhei para a Joana com o rosto marcado pelo choro de felicidade e dei um tapinha gentil em seu ombro.
— Vá tomar seu banho que eu vou logo depois.
Ainda deitada na cama, com os cabelos trançados pelo lençol, ela respondeu:
— Você vai me contar da festa depois?
— Eu te falei que não tinha bolo. Não era aniversário.
— Eu sei. Mas eu quero que me conte como é uma festa de verdade.
Não era surpresa ela não saber, nunca teve uma festa de aniversário que fosse algo além de um bolo feito pela vovó e pequenas velas compradas no mercadinho da rua de baixo. De convidados, uma mãe ausente, um pai com pressa, vovó e eu. Quando certa vez foi convidada por uma colega de classe para seu aniversário, fiz questão de proibir.
Um, ela mal conhecia a menina.
Dois, eu conhecia menos ainda seus pais.
Três, eu ainda não estava pronto para tira-la da bolha que a coloquei.
— Conto, curiosa. Vai logo antes que a gente se atrase — a apressei.
Joana se levantou com seu pijama verde de bichinhos e deixou a porta do quarto arreganhada ao sair.
A porta aberta me dava agonia, mas não levantei para fechar.
Deitei de bruços outra vez e peguei o celular.
Fora as mensagens que li ontem, do Marcelo avisando que chegou em casa e outra da vovó dizendo o mesmo, não havia nenhuma outra. Era cedo demais para Gabrielle me mandar qualquer coisa e ontem chegamos bem tarde. Era incomum não trocarmos mensagens de boa noite, mas ontem também foi uma noite incomum.
Tentei não me precipitar achando que havia algo de errado.
Coloquei o celular para carregar quando vi a bateria baixa e criei coragem para levantar. Fui até a minha mochila sobre a escrivaninha e peguei a garrafa que ganhei de presente. Precisava esconder. Joana era muito curiosa e com certeza daria um jeitinho para ler os bilhetes.
Enquanto olhava ao redor do quarto em busca de um bom esconderijo, os acontecimentos da noite passada me golpearam. Tive momentos ruins, mas também muitos momentos bons que mereciam um registro.
Peguei um Post-it e uma caneta para anotar. Mordi a tampa enquanto filtrava os pensamentos até resumir todos em um.
"A gente se beijou e agora estamos obcecados um pelo outro"
Dobrei o bilhete em cinco partes até que ficasse minúsculo e guardei na garrafa. O chuveiro desligou, o que significava que eu teria que correr se não quisesse que a pestinha me flagrasse cheio de segredinhos.
Voei até o meu guarda-roupa e soquei a garrafa na gaveta de meias. Antes de fechar a porta, vi a Teté no fundo do armário, entre os casacos onde a coloquei há um bom tempo. Achei que tirando aquela boneca do meu campo de visão, parando de olhar para ela todo santo dia, seria mais fácil de seguir em frente. Eu não podia estar mais enganado.
Eu ainda tinha as memórias daquele outono frescas na mente e elas me lembravam constantemente o quanto eu era fraco.
— O sabonete acabou — disse Joana ao entrar no quarto enrolada no roupão e uma toalha na cabeça.
Pisquei várias vezes para expulsar as lágrimas se formando no fundo das minhas pálpebras e a olhei ao ter certeza de que os olhos estavam secos.
— Eu compro de tarde. Coloque seu uniforme mais quente — fiz um aceno de cabeça para a janela —, parece que o dia será nublado.
— Eba!! — Deu um pulinho. — Adoro dias frios.
Caminhei até ela e desenrolei a toalha dos seus cabelos. Peguei mecha por mecha e enxuguei.
— Diz isso porque está em casa quentinha, acabou de sair de um banho pelando. Quero ver quando estiver lá na rua e tiver que enfrentar aquela sala de aula fria.
Ela olhou para cima para me ver, enquanto eu ainda a secava.
— É que nos dias frios a vovó faz mingau com queijo e você faz sopa.
— Ah, então a sua preferência pelo tempo é só por causa do cardápio? — questionei com ar brincalhão e esfreguei a toalha no seu couro cabeludo para secar bem.
— E eu precisaria de outro motivo? — disse abafadiça com metade do pano caído no seu rosto.
Trocamos mais meia dúzia de palavras e eu voltei para o meu armário. Peguei uma muda de roupa e fui tomar banho. Usei a raspinha de sabonete que sobrou e lavei os cabelos com um shampoo barato de aloe vera. Como praticamente estava careca, usar condicionador seria tolice. Escovei os dentes, adorava a refrescância da menta no meu hálito, e para finalizar, deixei a água quente cair por minhas costas por um tempo. Os arranhões de Gabrielle não ardiam mais. Senti falta.
Apoiei uma perna na privada para secar, depois a outra. Passei um bocado de desodorante, já que o frio tendia a me fazer suar mais, e me vesti. Calça de moletom preta, camiseta bege e suéter azul-marinho ganhado da vovó. Nos pés, por enquanto pantufas pretas já bastante envelhecidas. Tudo não levou nem dez minutos.
Voltei para o quarto sabendo que encontraria Joana esperando por mim para arrumar seus cabelos. Uma rotina que ela fazia questão de manter, mesmo já tendo seus oito anos de idade e lutando dia após dia por um pouco de independência.
— Que penteado vai querer hoje? — perguntei, indo direto olhar pela janela. Queria saber se o frio seria crítico suficiente para obrigá-la a colocar luvas, touca e cachecol. As nuvens estavam acinzentadas, o céu branco. A chuva chegaria logo, mas o ar não parecia cortante.
— Uma trança — respondeu meio que sem dar importância; parecia distraída diante do espelho. Se virava de um lado para o outro com seu uniforme azul e branco e as bugigangas que fizemos nas férias. Brinco de florzinha, colar escrito seu nome e um anel de humor em cada mão. Tudo de miçanga. Ela se virou para mim e me mostrou as costas das suas mãos. — Se eu usar um anel de carinha feliz em uma mão e um de carinha brava na outra, vão pensar que sou bipolar?
Me aproximei rindo. Escorei na parede ao lado do espelho e cruzei braços e tornozelos.
— E você sabe o que é bipolar?
Aham. A professora ontem disse que alguns alunos deixam ela bipolar. Que vai de extrema alegria, para um súbito ataque de raiva em meio segundo.
— A bipolaridade da sua professora se chama alunos pestinhas. — Descruzei os braços e peguei suas mãos pequenas e frias. — Mas por que você quer usar esse e não só esse? — Apontei para o anel zangado e depois para o de sorriso.
— Porque às vezes eu feliz e às vezes fico com raiva, ué.
— E quando você fica com raiva? — perguntei naturalmente, sem saber que justamente essa pergunta seria a minha ruína.
— Quando as meninas da minha sala falam da mamãe e do papai.
Meus olhos correram para o rosto dela e cada gota de suor em mim foi sugada.
— Elas falam dos nossos pais? — procurei manter uma voz suave.
— Falam.
Eu fiquei tão preocupado com isso. Preso em uma oscilação entre querer dizer que ela podia conversar abertamente comigo e receio do que ouviria.
Eu era o irmão mais velho e sabia que em algum momento teria que lidar com essa situação. Ela estava crescendo, seu círculo social aumentando. As perguntas, os comentários, se tornariam mais frequentes. Seu primeiro questionamento veio ano passado mais ou menos, quando finalmente quis saber quem era a Juciene que as pessoas tanto falavam que ela se parecia. Eu expliquei com o máximo de tato que consegui. Ela ficou horrorizada ao descobrir que tinha uma irmã mais velha que levaram de nós, entretanto, como não chegou a conhecê-la, não perdeu muito tempo pensando no assunto e nem fez tantas perguntas.
Mas eu sabia que não seria desse jeito para sempre. Eu precisava começar a me preparar.
Me agachei na sua frente e segurei seus braços com delicadeza.
— O que elas dizem?
— Não quero te deixar bravo — respondeu manhosa.
— Nunca fico bravo com você, meu amor.
— Nem quando pergunto da mamãe?
— Por que eu ficaria bravo por você perguntar?
— Você sempre faz aquela cara quando eu pergunto.
Meu corpo travou, enquanto pensava se fiquei horrorizado, preocupado ou triste.
— Qual cara?
Ela deu de ombros e pareceu escolher bem as palavras.
— Como se eu tivesse feito algo errado e aí seu nariz abre e fecha e você não olha para mim.
Doeu no fundo do meu coração
— Você nunca faz nada de errado, é uma criança que está aprendendo e eu estou aqui para te ensinar. Você pode me perguntar qualquer coisa que quiser. Tudo mesmo. Estou aqui para tirar todas as suas dúvidas — informei. Haviam partes da nossa vida que ela ainda não estava pronta para descobrir e outras que eu não estava pronto para contar, mas não queria que Joana crescesse como eu cresci. No escuro. Sentindo-se culpada por fazer perguntas, machucando a si mesma por medo de machucar os outros.
Eu não tinha ideia de como lidaria com essa nova etapa da minha vida, mas eu daria um jeito. A minha irmã não passaria por nada do que passei.
— A mamãe é louca?
Ela raramente questionava a respeito da nossa mãe. Não sabia se por medo de como eu reagiria com a pergunta ou medo de qual seria a minha resposta. Mas Joana não era tola. Mesmo comigo fazendo o impossível para não perceber, ela se deu conta de que o sangue que unia nossa família, não era laço, era nó.
Ela viu que a nossa mãe, a pessoa que mais devia nos amar e proteger, era fria e distante. Nosso pai, um egoísta que raramente vinha nos visitar. E aquele quarto ao lado do nosso, que era mais importante que nós...
— Ela é portadora de uma doença que se chama esquizofrenia. Não é loucura. Mas digamos que a mente dela funciona de uma forma diferente da nossa.
— Por isso toma tanto remédio?
— Exatamente. Os remédios a ajudam a mente dela a ficar mais organizada. O que suas amigas disseram sobre ela? — sondei, pisando em ovos. Nossa família era composta, especialmente, por pais zangados e ausentes, mas ninguém se atrevia a falar comigo a respeito. Bem, eu meio que não discutia assuntos de casa na rua. Sabia até que ponto era seguro me abrir. Mas Joana não. Em um deslize podia acabar soltando que quando a palma da mão da mãe estava fria, era nas minhas costas que a esquentava. E eu tinha medo que as pessoas pensassem que estávamos sofrendo negligência.
Eu li certo dia em um artigo que: "Mesmo quando a negligência é decorrente de um transtorno mental, pode ser realizada uma denúncia que possibilitará que a criança seja introduzida nas redes de proteção do Estado e da sociedade. Nessas circunstâncias, a criança geralmente é afastada de sua família de origem, como medida protetiva, podendo ser encaminhada para abrigos ou para o programa família acolhedora até que sua situação se resolva. Esta situação pode criar a possibilidade de apoio para esta família, possibilitando a reintegração familiar, ou mesmo, na impossibilidade de retorno da criança para sua família de origem, a colocação da criança em família substituta, pela via da adoção".
Sinceramente, eu morreria se a Joana fosse entregue para outra família, só que era justamente o que aconteceria se a polícia batesse aqui. Vovó vivia com um homem agressivo, jamais seriamos entregues para ela. Nosso pai nos abandonou. E nossa mãe... Já estava mais que claro para todos que seu problema estava longe de ser apenas transtorno mental.
Prendi o ar e a encarei.
— Conta para mim, meu amor. O que elas disseram? — reforcei a indagação. Sempre calmo e doce.
— É que as mães das minhas amigas às vezes levam ou buscam elas na escola e a minha nunca me levou. Aí elas disseram que ela não me leva porque é louca e pode surtar na rua.
— Entendi... — engoli em seco. — E o que você acha quando eu te levo?
— Eu gosto. Gosto muito. Você sempre me leva no cavalinho e é muito legal. Mas é que eu queria que a mãe fosse com a gente algum dia para que minhas amigas vissem e parassem de falar dela.
Prendi o ar. Não tinha como não me amargurar.
— Não sei se será possível, meu amor. A mãe ainda não se sente bem para sair de casa. — Ela não se importa com você e por isso nunca te levará. O pensamento cruel me mutilou. — Mas eu estarei sempre aqui. Eu e você somos uma família. Esta é a minha família. Eu achei. Sozinho, eu que achei. É pequena e incompleta. Mas é boa. Lembra?
... É, é boa — completou, abrindo um sorrisão ao lembrar do nosso filme preferido. Lilo & Stitch. — Dony... O pai foi embora por causa da doença dela?
Passei a língua pela gengiva. Como explicaria a uma criança o que era uma tragédia? Como explicaria que tudo começou porque seu irmão foi um irresponsável e por isso seu pai os abandonou e sua mãe estava definhando?
— Eu não sei o porquê de o pai ter ido embora, mas às vezes os casais não dão certo e se separam.
— Aquele dia ele disse pra mamãe que tinha outra mulher. É por causa dela que ele foi embora? — Se referiu à briga em que o merda do nosso pai admitiu que tinha outra pessoa, e nossa mãe teve uma recaída. Nenhum dos dois se importou se havia uma criança assistindo tudo. Afinal, ela é uma criança. Não entende nada...
— Não. Às vezes não tem existe motivo ou um culpado. Eles só não queriam mais ficar juntos — falei em tom calmo e ela se pegou pensando em tudo que ouviu.
— Ah...
Subi as mãos para seus ombros.
— Mais alguma pergunta?
Ela me encarou por um instante, como se estivesse pensando, até que balançou a cabeça negativamente.
— Ótimo. Antes de fazermos sua trança, quero que me prometa que a próxima vez que essas meninas quiserem te magoar, você dirá para elas que tem um irmão muito, muito bravo e que ele odeia que mexam com a irmãzinha dele. Promete que fará isso? — ergui o dedo mindinho.
Seus olhos de mel brilharam suavemente.
— Muito bravo?
— Muito bravo mesmo. Diga que ele é tão bravo, que tem vezes que até rosna. Rawr — mostrei minhas garras.
Balançou a cabeça.
— Você não assusta nadinha.
— E se eu fizer isso? — Além de mostrar as garras, mostrei as presas. Me esforcei em animá-la e fazer sorrir, porque eu simplesmente me importava em como ela se sentia. — Te assustei agora?
Ela finalmente deu uma gargalhada que a sacudiu inteira.
— Nãaaao. Faz isso aqui — levou dois dedos no espaço entre minhas sobrancelhas e puxou pra baixo. Me fazendo franzir. — Agora eu prometo. Vou dizer que você é muito bravo.
Abri um sorriso e me ajoelhei. Até aquele momento, não tinha reparado que a posição me deixou todo dolorido. O meu coração partido não me deixou sentir mais nada.
— Perfeito. Agora que entramos em um acordo, quero que use este anel aqui. — Apontei para a carinha feliz, de miçanga amarela, e deslizei o zangado do seu dedo e o coloquei no meu mindinho. O ergui na altura dos seus olhos. — Só precisamos que um de nós seja bravo. Tudo bem se for eu?
Ela assentiu. Abriu um sorrisão que eu tanto queria e jogou os bracinhos a redor do meu pescoço. Me abraçou apertado e aconchegante. Nós criamos um ao outro. Ela me tornou quem eu sou e eu a transformei no que ela é.
— Elas não têm você, Dony. O melhor irmão do mundo é só meu.
Meu peito se retorceu de angústia. A abracei de volta, a fiz mergulhar em meu peito, não queria mais soltar. Dei um beijo na sua cabeça molhada. Eu achava tão lindo que ela não mudou a forma de me chamar. Isso mostrava que eu consegui. Que fiz um bom trabalho a criando. A minha irmã gostava de me ter como seu irmão e isso era como ter meus maiores sonhos realizados.
Me desvencilhei e passei o polegar por sua face macia feito pluma. Linda, meiga, inocente. Minha protegida.
— Vamos secar esses cabelos antes que a minha porquinha fique doente.
Sequei seus cabelos no secador e fiz a trança que me pediu. Seus cabelos se estendiam até ombros, mas os fios eram finos e foi rapidinho para secar. Finalizei o penteado com fita rosa da sua escolha e subi o zíper do casaquinho para não pegar friagem. Vi que os cadarços dos seus tênis estavam desamarrados, então amarrei.
— Achei que tinha aprendido a fazer o laço — comentei, enquanto finalizava o laço do pé esquerdo.
— Você amarra melhor. O meu solta muitooo rápido — explicou.
Na cozinha, preparei pão de forma com manteiga e um copo de achocolatado para ela. Esperei que tomasse, enquanto eu lavava a louça que restou da noite passada.
Dony, q-quando fô fê a Gabi? — perguntou de boca cheia.
— Mastigue para falar, Joana.
Ela demorou os minutos que eu imaginava ser da mastigação e retornou:
— Quando eu vou ver a Gabi? Tô com saudade dela.
— Ah — os pelos dos meus braços se ergueram ao som daquele nome. Como se pudesse sentir os olhos pretos sobre mim. Sequei as mãos no pano de prato e me virei para ela. — Verei se ela estará disponível mais tarde.
— Ebaaa — deu um grito.
Shhh! — levei um dedo à boca indicando silêncio. — Vai acordar a mãe.
Ela colocou as mãos nos lábios e olhou assustada para a porta da cozinha. Esperamos por algum grito, mas não veio.
Joana voltou a falar:
— A Gabi foi pra festa de ontem também?
Ela era bocuda, podia acabar soltando sem querer quando visse Carlos. Achei melhor mentir.
— Não. Ela foi para a escola. Você terminou de comer? Podemos ir?
Ela arrastou a cadeira e se levantou. As perguntas continuaram.
— Como é uma festa?
Peguei sua mochila ao pé da mesa e joguei nas costas. Em seguida, coloquei as mãos em seus ombros enquanto a empurrava para fora da cozinha.
— Chato. Gente demais, barulho demais, e muita bebida.
— Você bebeu? — jogou a cabeça para trás para me olhar.
— Claro que não. — Fui procurar meus chinelos ao lado do sofá na sala e os calcei. Antes de sair, reparei que um frasco dos remédios da mãe estava caído no tapete. O peguei e coloquei sobre a mesinha de centro.
— Bebeu sim, mentiroso. Você tava fedendo quando te acordei — respondeu me seguindo pela casa. Seus olhos se arregalaram: — Aiiii, vai cair.
?
Ela apontou para algo às minhas costas. Me virei. O frasco de remédio rolou pela mesa e parou bem na beirada. Ficou por um triz.
— Uuuh, foi por pouco — murmurou. Tinha uma ondulação no tapete que deixava a mesa desregular, mas decidi que arrumaria na volta.
***
Eu tinha razão. Hoje será um dia gelado. Reparei enquanto levava Joana no cavalinho até a sua escola. Mesmo morto de ressaca e cansado após uma noite agitada, a carreguei nas costas enquanto ela segurava minhas orelhas para se equilibrar e falava feito uma matraca. Só dava para ouvir sua voz naquele bairro silencioso. Nem o Sol tinha acordado por completo, mas Joana sim.
— Não vejo a hora de quando ficar mais velha poder faltar na escola e ir pra muitas festas.
— É o que Joana?
— Eu ouvi a vozinha dizer que você tinha que aproveitar a sua idade e fazer essas coisas antes de ficar velho. Eu também quero fazer coisa assim antes de ficar velha como ela.
Esses dias Joana assistiu a um filme e disse que queria se casar com o ator. Eu logo pensei em quebrar a TV. Agora, com esse comentário, resolvi que ela ter vida social era supérfluo.
— Eu tenho dezessete anos e essa é a primeira festa que fui. Se quer saber, odiei. Prefiro aproveitar a minha adolescência de outros jeitos e vou torcer para que futuramente você pense como eu. — Esses pensamentos, na verdade, eram orações. Eu não tinha cacique para suportar Joana sendo uma menina levada como a Gabrielle. Não mesmo. Dava dor de cabeça só de imaginar.
— Dony, é verdade que se um homem e uma mulher se gostam muito, eles se beijam e fazem um bebê?
Tropecei nas próprias pernas.
— Quem disse isso!?
— Minha amiga. Ela disse que a mãe dela explicou pra ela como os bebês são feitos.
Essas amigas e suas perguntas cabeludas adoravam me foder. Fiquei tão envergonhado, que não vi maneira de me esquivar. Por outro lado, não responder seria uma maneira silenciosa de dizer: "vai lá, pergunte a outra pessoa". E o problema era que Joana perguntaria e eu não gostaria que ela aprendesse isso com um qualquer.
— O que realmente você quer saber?
— O que é sexo?
Meu pai amado... Respirei fundo e pensei por onde começaria. Não queria falar da boca para fora. Essa era uma pergunta importante. Especialmente para fazê-la entender o que era um abuso sexual.
— Se lembra quando a vovó te ensinou a tomar banho sozinha e te mostrou as áreas de limites? Onde não é legal que um estranho se aproxime e toque?
— Siiiim!!! — deu um grito assustador. — É aqui que eles se beijam????
Fiquei horrorizado e bastante surpreso com sua linha de raciocínio.
— Vamos lá... Quando duas pessoas se gostam muito, se conhecem e se confiam, eles criam uma certa intimidade e sim... Eles se tocam nessas partes — olhei para cima. — Isso é sexo, mas apenas os adultos fazem.
— Então os bebês nascem quando essas partes são tocadas?
— Hum, sim. Os garotos têm as partes deles e as meninas as suas. Quando eles são adultos — reiterei pra ficar claro —, digamos que as partes dos dois se conectam e às vezes pode gerar um bebê.
— Eca!!!! Não vou fazer isso nunca!!! — disse com ar de menina boba e asco.
Dei risada disso.
— Não pense sobre isso agora. Você terá muito tempo pela frente. Sua vida adulta começa aos dezoito anos.
— Nossa, então ano que vem você vai ter um bebê???? E-eu não quero que você tenha um bebê. Minha nossa. Eu sou muito nova pra ser titia!!!
Engoli ruidosamente a risada.
— Não, Joana. Eu disse que às vezes pode gerar um bebê. Não é sempre e eu com certeza não quero um bebê. Fica tranquila.
— Nunca? Você não quer ter um bebê nunca?
Levando em consideração todo o trauma que sofri para criar você...
— Nunquinha.
Quando chegamos à sua escola, as nossas risadas ainda podiam ser ouvidas nas ruas. Porém, ao descê-la do cavalinho, meu sorriso não estava mais presente nos lábios. Era exatamente como Joana descreveu naquela manhã. Não todas, mas boa parte das crianças estavam acompanhadas da mãe ou do pai. Tinha um e outro que era levado por algum adolescente, mas não era para esses que minha irmãzinha olhava. Era para aquilo que ela não tinha. Pais amorosos. Uma família completa e saudável.
O suor frio se acumulou em minhas palmas, com lágrimas ameaçando escapar dos meus olhos. Sua carência era a única situação que nem os anos e nem toda minha sabedoria me ensinaram a lidar.
— Não faça bagunça, hein? Lembra que a carinha mal-humorada está comigo — tentei fazer minhas palavras soarem agradáveis e agachei-me para mostrar o anel em meu dedo. — Qual é a sua?
— A feliz.
— Então trate de ter um dia feliz ou... Rawr — mostrei as presas e as garras.
Ela riu e fez rawr de volta.
Deu um beijo molhado na minha bochecha e a vi sumir com seus fios castanho-claros puxados na trança que despontava pelas costas.
Com um suspiro resignado e um aceno de longe para a professora que recebia os alunos na entrada, caminhei de volta para casa. Era o que eu fazia todos os dias. A levava e voltava correndo para organizar a bagunça e preparar almoço. Algumas vezes conseguia encontrar tempo para treinar na academia do Carlos, mas hoje não estava afim de ir.
Quer dizer, não tinha estrutura física, muito menos mental para lidar com isso. Como eu olharia na sua cara e te chamaria de tio?
Conforme minhas pernas se movimentavam rápido e o vento frio resfriava o beijo quente na minha bochecha, senti o celular vibrar no bolso. Acho que fiquei pensando tanto em Gabrielle, que a convenci por telepatia a me enviar uma mensagem.
Foquinha: Bom dia, tarado de axilas. Eu descobri que existe um termo específico para esse fetiche e estou há quase uma hora rindo disso. Axilismo. Pois é, qual foi a minha surpresa ao descobrir que existem mais homens por aí querendo chupar o sovaco de suas parceiras?

Não sei vocês, mas essas fotos derreteram o meu coração 🥺🥹

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