Jhony
— Você encontrou! Ufa, que alívio — Gabrielle surgiu de repente e arrancou a camiseta da minha mão. Nem tive tempo de responder ao Danilo. Ela fez a troca ali mesmo, sobre o cropped. Quando ergueu os braços para tirar a minha camiseta e vestir a sua, reparei pela primeira vez que tinha axilas lindas. Tão lisinhas que até dava vontade de beijar, acariciar com o nariz. Dava impressão de ser macia como pétala e eu irresistivelmente queria tocar. Sentir...
— Pronto. Todos felizes. Agora vamos pra casa. — Marcelo bateu uma palma. Então olhou para mim. Para Gabrielle diminuindo o comprimento da camiseta por dentro da calça. Olhou pra mim de novo. — Vai logo. O que tá esperando? Quer ajuda para se vestir?
— Hã? — soltei, infeliz.
— Hã — me imitou com uma voz tansa e incrédula. O intimidei com meu olhar fixo. Do seu lado, Gabrielle deu uma risada fofa. — Meu Deus, Jhonathan. — Marcelo deu um tapa na minha mão que pesava com a camiseta que Gabrielle me entregou minutos antes. Foi quando me lembrei de que divagava sobre o sovaco da garota e esqueci do mundo real. — Coloca ou não. Só vamos embora.
Me vesti prontamente.
Assim que o algodão caiu por meu peitoral, percebi o aroma de lavanda.
Cheiro de Gabrielle.
O seu perfume na minha roupa era surpreendentemente vívido, como se estivesse me abraçando bem agora. Agora eu carregava um pouquinho dela comigo. Um pouquinho daquele ser lindo e perigoso que tinha as axilas mais lindas. Tudo nela parecia perfeito, era lindo e acho que eu teria essa sensação ao seu respeito até o último dia da minha vida.
— A gente se vê amanhã, lovers. — Uma voz falou estridente. Ele falou e fez meu foco mudar rapidinho. Minhas narinas dilataram com a raiva ganhando espaço. — Agora tenho um ótimo motivo pra ir na escola e muitos gols pra marcar. Ah, vou marcar um gol especialmente para você no próximo campeonato. Ei, time, prestem atenção aqui. Cadê meu time? — Ele falava agora com a casa, aos gritos. Todos na proximidade olharam, mas só três jogadores o responderam com um erguer de copo. Os outros não pareciam ter ouvido ou já tinham ido embora. — No campeonato do mês que vem, em Boa Vista, vou marcar um gol para a lovers. Um não. Dois, e vocês serão testemunha.
— AEEEEEE! — Os babacas gritaram agitados de onde estavam. Parecia um zoológico de animais histéricos.
Pisquei os olhos para Danilo. Ele queria me atiçar?
Seu olhar fixou-se no meu por vários segundos, minha boca se encheu de palavras ofensivas. Eu não gostava nem um pouco dele. E não era só porque ele queria Gabrielle a qualquer custo, mas também por ser o tipo de garoto que qualquer adulto instintivamente obrigava as filhas inocentes a ficarem longe.
Mordi o canto do lábio inferior. Por que é que não o soco? Por que não o amasso como uma bola de papel e jogo no lixo? Ah, sim. Porque a maluca prometeu ficar pelada no meio da casa se eu fizesse isso.
Eu não aguentaria ela me chamando de cãozinho desobediente mais uma vez.
Esse era eu. Aceitando uma ameaça absurda de uma teimosa que parecia ter mais maturidade quando tinha oito anos.
— Devia ir para a escola pra largar de ser um burro convencido. E pra quê eu vou querer esses gols? Eu hein. Desconheço presente mais inútil. — Gabrielle retrucou na frente de todo mundo, com uma frieza de dar dó, e se virou de costas para ele. Disse para meu amigo e eu: — Tô com sede, vou lá beber água. Me chamem quando estiverem prontos para ir. — Ela saiu batendo os pés pelo corredor e voltou para a cozinha.
— Iiiiih, levou um fora — a casa inteira começou a vaiar o Danilo. Até os seus próprios amigos.
Certo, ok. Eu precisava rir.
— Corte Tramontina. — Marcelo entrou na onda. Não sufocou a risada com aquela patada e sua gargalhada escandalosa me fez ceder e também rir.
Danilo ficou tão envergonhado, que soltou uma risadinha, quase com violência, só para disfarçar o constrangimento. Tive a sensação de que se estivesse sentado no sofá, teria afundado nele.
Todos que ouviram aquele coice gritavam e riam. Seus parceiros de futebol eram os piores e falavam desaforos, como: Ih, chora nãaao.
Alguns cantavam: "Oh, Gabrielle, volta desgramada. Volta, Gabrielle, que eu perdoo a facada".
— As difíceis são as melhores — Danilo tentou contornar o vexame, mas não funcionou. Ele aparentemente não sabia onde enfiar a cara e as expressões faciais ficavam cada segundo mais evidentes.
Dei duas passadas na sua direção. Não queria chutar cachorro morto, mas eu não perderia a oportunidade.
— Espero que encontre outra camiseta que goste. — Apoiei uma mão em seu ombro, num claro gesto de condolência. — Tá na cara que essa não serve para você.
***
Fomos os três embora juntos. Gabrielle, Marcelo e eu.
Marcelo nos acompanhou boa parte do caminho, o que impediu Gabrielle e eu de falarmos abertamente sobre todas as coisas que tínhamos engasgadas. Tínhamos muitas. Acho que eu não saberia nem por onde começar.
— O coitado deve estar torto até agora — zombou Marcelo. Obviamente o primeiro assunto ao deixarmos a festa, seria o coice que ela deu no anfitrião.
— Ele pediu por isso — revidou. — Mandei me deixar em paz, mas o cara é teimoso.
— Duvido ele ir pra escola amanhã. E se for vingativo, nunca mais seremos convidados para uma festa — continuou Marcelo.
— Na boa, eu peguei tão pesado assim? — ela olhou do Marcelo para mim. Indo de segura para insegura.
Apontei um dedo para mim. Me indicando.
— Sério que está me perguntando? — Ergui uma sobrancelha sarcástico e ajeitei a alça da sua mochila no meu ombro. — Porque se estiver, provavelmente você sabe a minha opinião.
— Todo mundo sabe a sua opinião, Jhony — comentou Marcelo. — Você quer humilhar a cara dele desde que passou por aquela porta.
— É, mas eu não faria tão bem quanto Gabrielle fez — dei uma piscadela secreta para ela e a deixei sem jeito. Esse contraste de menina ora sacana, ora tímida, acabava comigo.
— Não mesmo. Tipo, de um soco você se recupera, mas um fora? Levar um fora já é ruim. Imagine na frente de quase toda a escola? Isso vai seguir ele até o último dia de aula. "O que vou fazer com esses gols? Desconheço presente mais inútil". Puta merda, Gabs, você pegou todas as medalhes e troféus que o Danilo já ganhou na vida dele, e jogou pela descarga. — Marcelo gargalhou.
— Ai! Não façam eu me sentir mal. Será que peguei muito pesado? Eu exagerei?
— Relaxa — a consolei. Estiquei o braço e passei os dedos por seus cabelos. — Quando ele morrer, ele esquecerá. A menos que um de nós se proponha a escrever em sua lápide. Talvez eu mesmo me encarregue disso.
— Jhonathan! — me olhou boquiaberta. Marcelo ria sem parar. — Meu Deus, vocês são infernais. Antes não entendia vocês serem amigos, pareciam tão diferentes. Agora estou revendo meu conceito.
— Você não fez nada de errado, Gabs. Deixou uma ótima primeira impressão. Só que toda vez que o Danilo estiver para marcar um gol, ele vai lembrar das suas palavras e pensar que a vida dele não faz nenhum sentido — completou Marcelo, dessa vez até ela deixou sua máscara cair e riu. Então ele acenou com a cabeça mudando de assunto. — Vamos dar uma passada ali rapidinho. Preciso tirar essa porcaria da cara.
Paramos os três em uma loja de conveniência de esquina. Marcelo entrou para usar o banheiro e Gabrielle e eu aguardamos ao lado de fora.
Ela tentava enxergar seu reflexo na fachada de vidro da loja, enquanto eu não fazia nada além de esperar pelos dois escorado na parede com braços e tornozelos cruzados.
— Estou com cara de que bebi feito uma despirocada? — Gabrielle me perguntou de repente.
Virei os olhos para ela. Tanto achei graça, quanto não entendi a expressão.
— Despirocada?
— É. Tipo com cara de louca? — Passou os dedos para limpar a maquiagem borrada embaixo dos olhos. Ainda tentava encontrar seu reflexo naquele vidro imundo e com marcas de dedos.
— Você sempre está com cara de louca, meu bem.
Quando ela se virou e veio até mim, sabia que eu apanharia, mesmo assim fiquei.
Deu um tapa no meu braço que até fez barulho.
— Ai!!
— Para de graça. É sério. Tem maquiagem borrada em mim? — resmungou piscando para meu rosto. — Se meu pai sonhar que eu estive em uma festa, ele vai ficar na minha orelha pelo resto do mês. E depois vai ficar na sua, porque, tecnicamente, você é os olhos e ouvidos dele quando ele não está por perto, lembra? Quer que eu diga a ele o que "seus" olhos e ouvidos andaram fazendo!?
— Tudo bem, já entendi. Não precisa de ameaçazinha. Vem cá pra eu te ver — a puxei pelo passante da calça jeans para que saísse da sombra. Só que puxei forte demais.
Ela cambaleou em direção a claridade, na minha direção, nos meus braços. A segurei pela cintura para que não caísse.
— Desastrada — suspirei.
— Ogro!
Com as costas ainda escoradas na parede, separei as pernas e desci o corpo para ficar na sua altura. Encaixei seus joelhos entre os meus e peguei seu rosto entre as mãos. Inclinei a cabeça e a examinei de perto, perto demais. Uma tombada de cabeça e nossa testa colaria, na melhor das hipóteses...
— O que tá fazendo!? — resmungou meio trêmula. Olho no olho.
— O que me pediu. Fique parada.
Gabrielle ficou desmaiada de vergonha e olhou para o lado, evitando um contato direto comigo.
— Precisa ser tão perto assim? — Seu soluço ondulou em torno dos meus ouvidos.
Dei um sorrisinho torto que ela não viu por ainda estar me evitando.
— Você não reclamou quando fiz isso debaixo da cama — respondi na defensiva.
— Não mesmo — sussurrou e senti seu sorriso se formar na ponta dos meus dedos.
— Descarada — falei baixinho.
Ela ficou quieta, exceto pela respiração hipnotizante.
Puxando.
Prendendo.
Soltando.
No começo, eu estava mesmo verificando os borrados da sua maquiagem, mas meus olhos... Porra, meus olhos honestamente começaram a procurar por sua boca. Desceram pelo nariz de botão, até os lábios entreabertos. Respirando. Respirando. Nossos hálitos se misturando até me deixarem em um coma alcoólico de desejo.
Meu coração não se manteve intacto. Disparou.
Como eu lidaria com isso? Por que fiquei tão perto se não tinha a menor condição de a olhar sem tocar? Meu maior erro foi me aproximar tanto. Não planejei. Só aconteceu. Uma parte minha ainda não entendia que não era seguro chegar perto assim dessa menina. Uma parte minha a trazia para meus braços como se tivéssemos força para não a prender.
Soltar.
Diabo, até seu sovaco eu comecei a cobiçar. Como cheguei a esse ponto?
De repente Gabrielle me encarou com aqueles lindos olhos redondos. Falando assim, parecia incrível, mas meu coração me traiu e suplicou por um beijo em silêncio. Ali, na rua, com Marcelo prestes a surgir a qualquer momento. Eu queria muito beijar Gabrielle agora. Falando sério, queria tocá-la com meus dedos no meio daquele nada. Contra a parede de vidro sem me importar com quem quisesse assistir. Era maluco assim que sua presença me deixava.
— Focê tá apeitando as minhas buchechas. — Se expressou com dificuldade e uma careta. Foi quando percebi que meus dedos a apertavam forte e suavizei as mãos em seu rosto. — Se esqueceu que estava segurando um ser humano? — ela piscou de modo brincalhão.
Eu não estava para brincadeira.
— Forte demais para o seu gosto?
Ela riu com o canto da boca e levantou os braços da lateral do corpo. Apoiou a palma das mãos em meu abdômen. Meu sangue ferveu nas veias.
— Pode apertar, amor. Sou sua para machucar.
Meu coração disparou em meio às ruínas.
Não faça eu estremecer, amor... Não faça isso comigo.
Não pude evitar. Meu bom senso criou crateras como a Lua. Rastejei o polegar por seu lábio inferior, desenhando feito batom. Ela ronronou. Eu arrepiei. Quase deixei um gemido ressoar.
Gabrielle não me perdoaria se acontecesse. Diria que seu cãozinho precisa de coleira.
Focinheira.
Droga, me coloque correntes, preciso delas.
— Tinha batom borrado aqui — arfei. Mal lembrava de respirar, mas a encarei como se pudesse. Eu meio que estava jogando minhas mãos para o alto. Rendido.
— Tem certeza de que não é nada que precisa ser tirado com a língua? — Suas mãos desceram para o cós da minha calça e seguraram bem ali. Nos entreolhamos. A maldade dançando ao redor das pupilas dilatadas.
Ela era um sonho que meus pesadelos começaram a invejar. O modo como minha mente não parava de suspirar por cada trejeito, era desesperador. Não tinha mais jeito certo de olhar para Gabrielle. Eu me sentia um inseto capturado por uma teia de aranha, que quanto mais se contorcia para escapar, mais preso ficava.
Acho que eu a deixaria me comer.
Uma buzinada... Uma buzinada na rua foi o que me fez retomar a consciência ou nem todo os empecilhos no mundo me impediria de beijá-la.
Consegui frear as emoções e a empurrei para afastá-la. Endireitei o corpo e depois a mente antes de voltar a encarar.
— É melhor você prender os cabelos — falei, quase não saiu voz. — E também os pulsos. Os seus ou os meus, se preferir.
Ela soltou uma risadinha com o final da minha frase, mas arregalou os olhos para o começo.
— O que tem meus cabelos? — Levou uma mecha até o nariz para cheirar. — Tô fedida?
— Não. Na verdade...
— Na verdade o quê? — Sua aflição não foi fácil de ignorar, me fez rir um pouco. — Na verdade o quê??? Desembucha antes que eu coloque um saco na minha cabeça.
A única coisa que eu conseguia fazer era rir como um bobo. Comecei e não consegui mais parar. Admito que Gabrielle tinha facilidade em me deixar animado e ignorar que boa parte de mim estava estressada.
— Jhonathan!!!! — Ela me lançou um olhar agressivo e colocou as mãos na cintura como gente grande. Se aproximou novamente e me encurralou contra a parede. A respiração por meu pescoço. Meu rosto ficou quente. Aquele menina, de um metro e meio estava tentando me intimidar. Eu ia acabar beijando ela ou mordendo suas bochechas.
— Você fica fofa assim — disparei.
Na mesma hora, Gabrielle ficou nervosa e deu um tapinha na minha cara.
— Jhonathan, eu preciso começar a agredir você?
Tá, eu precisava responder algo além de risadas e mais tarde eu faria questão de me lembrar que precisava me inscrever em uma reabilitação para me curar desse vício chamado Gabrielle.
Apontei para os fios de cabelo despontando no topo da sua cabeça:
— Você não está fedida, relaxa. Mas seus cabelos arrepiados meio que denunciam que sua noite foi pra lá de divertida. Só isso. Você pediu que eu te ajudasse a enganar seu pai, então recomendo que prenda os cabelos.
Os cílios compridos baixaram e ergueram. Ela sorriu. Um sorriso que brilhou pelo ambiente.
— Ai que horror. Quase me matou do coração por causa de um pouco de frizz!? — acusou revoltada e recuou alguns passos. Juntou os cabelos com uma mão e começou a enrolar com a outra, até formar um coque alto. Algumas mechas insistentes escaparam por baixo e pela lateral. — Só vou te perdoar porque recuperou a minha camiseta.
— Eu disse que recuperaria.
— É, mas você disse também que a queimaria — exclamou espantada. — Ei, por falar nisso, se me lembro bem, você prometeu me explicar o que o Marcelo quis dizer com aquilo lá.
— O que eu quis dizer com o que? — Marcelo atravessou a porta automática como se Gabrielle o tivesse invocado. Ou as minhas preces. — Desculpa a demora, galera. Quase rasguei a cara, mas finalmente consegui tirar a tinta — lançou algo na minha direção. — Pegue um e dê para a Gabs. Vai ajudar a disfarçar o hálito de cerveja.
Agarrei a embalagem de Trident de hortelã no ar. Eu queria tirar o cheiro de cigarro do meu hálito, óbvio, mas não fingiria que não foi um escape meu amigo ter aparecido justamente no momento em que eu precisaria dar explicações que resultariam em mais aborrecimentos.
Entreguei primeiro um chiclete para Gabrielle e só depois peguei um para mim. Devolvi o restante para Marcelo e retomamos a caminhada em passos que pareciam até relaxantes para os meus padrões.
Marcelo contava sua experiência com a festa e eu e Gabrielle apenas ouvíamos mascando o chiclete. Fazer algo assim com meus dois maiores amigos, deixou meu coração formigando. Às vezes eu até fazia piada. Eu não era de piadas.
— Acho que tinha gente demais — pontuou ele na outra ponta, enquanto Gabrielle estava no meio. — Teve uma hora que chegou a me dar claustrofobia e precisei ficar um pouco na rua. Como é possível Danilo conhecer tantas pessoas? Tipo, quem tem tantos amigos assim?
Inalei fundo o cheiro da noite.
— Amigos um caralho. Foram os que mais riram quando a Gabrielle deu patada nele — não resisti.
— Aposto que ele sabe o nome de umas quinze pessoas, no máximo. Começo até suspeitar que me chamava de Lovers só para não errar meu nome — disse ela com uma voz rouca. Então colocou a mão na barriga e contraiu os dedos. — Nossa. Acho que estou ficando enjoada.
— Era de se imaginar, você bebeu como se não houvesse o amanhã. Até entrou em uma competição — disse eu.
Ela olhou para o meu rosto com o músculo da mandíbula saltada.
— Por que será, né?
— Não tenho a menor ideia — arqueei as sobrancelhas com sarcasmo. — Vomita aí — disse apontando para um poste. — A gente te espera. Aproveite que está na rua e a natureza limpa.
— E que eu comprei a água — completou Marcelo erguendo a garrafa. — É pra você não ficar com a garganta queimando, saca?
— Não vou vomitar na frente de vocês — disse chorosa, ela estava olhando para frente de tão envergonhada. A menina desinibida tinha certas limitações. Então correu para colocar a mão na boca. — Ai, Deus. — Assisti algo em sua garganta subir e descer.
— Para de ser idiota, Gabrielle — soltei.
Ela me encarou imóvel. Se você soubesse quantos vômitos e merda de criança precisei limpar. Era meu ritual diário. Engoli o chiclete.
— Ali, vá atrás daquele pinheiro antes que você morra entalada e a descrição da sua lápide seja mais vergonhosa que a do Danilo. "Morreu engolindo o vômito" — continuei. Apontei para a árvore de casca grossa e escamosa perto do parque ao nosso lado. O mesmo parque que nos conhecemos. — A gente fica de costas.
— Na verdade, eu adoraria poder esperar você colocar tudo pra fora, mas infelizmente eu tenho que ir. Bom vômito, Gabs. Foi um prazer te conhecer. — Marcelo acenou para ela e então esticou a mão pra mim em forma de cumprimento. — Vê se aparece amanhã na escola. A gente precisa conversar.
Dei um tapa na sua mão. Eu odiava que ele fosse tão formal.
— Me manda mensagem quando chegar em casa — falei sem nem mesmo perceber. Eu detestava não conseguir parar de ser desse jeito, como se toda e qualquer pessoa vulnerável andando pela rua fosse responsabilidade minha. Eu ficava tão paranoico, que me fazia mal. Marcelo me olhou de um jeito estranho. Que adolescente era preocupado assim? Precisei acrescentar: — Você está bêbado, preciso saber se não caiu por aí.
Ele deu uma risadinha entrecortada e apontou o dedo para o parque ao lado.
— É melhor você ajudar ela.
Virei o rosto. Gabrielle saiu correndo para colocar as tripas para fora no pinheiro que sugeri.
— Que algo dentro daquele estômago sirva de adubo para a natureza não me detestar — murmurei.
Ele riu.
— Fique com isso. — Colocou a garrafinha de água na minha mão. Segurei firme o plástico. — Acho que meu estômago e intestino só sentirão o prejuízo amanhã.
Ele seguiu seu destino, enquanto fui cuidar do meu.
Peguei o celular no bolso da calça e coloquei a garrafinha no lugar. Fiz o que precisava fazer.
— Vomite sem pressa — falei para Gabrielle enquanto digitava uma mensagem e ia ao seu encontro. — Mandei uma mensagem para o seu pai dizendo que chegaríamos um pouco mais tarde porque sua professora segurou sua classe.
Os dedo dela ergueram tensos no ar. Parei de andar.
— Não vem aqu... — O vômito cortou sua fala.
— Não prefere que eu segure seus cabelos como naqueles filmes românticos?
Balançou a mão depressa.
— Se você chegar perto de mim, juro que vou... — mais vômito. — Sério, eu não bebi esse negócio verde que acabei de pôr pra fora!
Caí na gargalhada e fui me sentar no balanço de pneu. Coloquei a mochila no chão ao lado e passei uma perna, depois a outra. Comecei a me balançar lentamente.
— Tira foto e me manda.
Olhou para mim. Com seu rosto parcialmente escondido pela sombra da árvore, tive que supor o tipo de olhar que lançou na minha direção. Um diabólico, possivelmente mortal.
— Não vou te mandar foto do meu vômito. É nojento — bufou. Ela tinha um acanho escondido na voz enquanto dizia isso. — Como você consegue se balançar enquanto eu mal consigo ficar em pé sem sentir que estou num carrossel? — Colocou a mão na barriga e expirou desolada. — Meu estômago não para de girar. Seu estômago por acaso é de ferro? Você bebeu muito mais que eu e tá aí, como se nada tivesse acontecido.
— Digamos que criei uma certa resistência nas férias. — Me impulsionei pra frente e para trás.
— Não posso ficar uns dias afastada que você cria novos hábitos — rebateu, sem desconfiar que eu era acostumado a beber já fazia bons anos.
— Nesse caso é melhor não ficar mais longe de mim, não acha?
Ela inclinou a cabeça de um jeito meigo, então deu um pulo sendo tomada por mais azia. Se virou para seu montinho de sujeira escondido entre folhas, inclinou o corpo para frente e vomitou de novo. Desta vez foi um minuto inteiro de puro vômito, não parei de prestar atenção nela. Até que todo som silenciou.
— Acho que você já esvaziou seu estômago — comentei. — Se sente um pouco melhor? Podemos ir?
Endireitou as costas e olhou ao longo do parque, como se seu instinto natural estivesse relutante em caminhar.
Com isso, desci do balanço e fui na sua direção.
— O que você comeu o almoço que tinha a cor laranja? — questionei sério, em uma tentação de provocá-la. Até parece que eu conseguiria ver qualquer coisa naquela distância e escuridão. — Olha, tem milho ali?
Cada partícula do seu ser ficou assustada. Comecei a rir.
— Mais uma palavra sobre meus vômitos e vou quebrar a sua coluna! — ameaçou, e, cacete, senti meu corpo arrepiar.
Destampei a garrafinha de água e entreguei olhando firme em seus olhos.
— Faça uns bochechos.
— Sim, senhor. — Deu um sorriso torto e foi meu estômago que se revirou.
Fez bochecho e cuspiu para o lado.
— Não encha tanto a boca, vai engasgar.
Ela franziu a testa.
— Você me trata como um bebê — disse, antes de encher a boca de água pela segunda vez.
Franzi ligeiramente os lábios.
— Suas axilas são lindas quanto as de um bebê.
Respingos de água se chocaram contra a minha camiseta quando sua boca explodiu feito uma bexiga.
— Minhas... — abriu olhos enormes. — O quê?
Olhei para minha roupa e depois para ela. Descrença e graça se chocando. Ela percebeu.
— Você acabou de elogiar meu sovaco? — perguntou.
— Você acabou de cuspir em mim? — julguei. Aquela camiseta não era nada nova, mas depois da noite de hoje, duvidava que voltaria a ser branca.
— Só porque elogiou meu sovaco do nada.
Agarrei seu pulso, a mão que segurava a garrafinha, e estendi seu braço no alto. Com a outra mão, mergulhei os dedos na sua axila por dentro da manga da camiseta. Fiz movimentos suaves que levou Gabrielle a encolher os ombros.
— Viu? Macia. Parece um pêssego aveludado.
— Eiii, o que tá fazendo??? I-isso dá cócegas. — Ela se contorceu toda, até dobrou o corpo de um jeito estranho e começou a gargalhar. Seu peito pulava de tanto que ria. Eu estava falando sério, mas eu gostava das suas risadas. Do seu rosto se transformando em um dia ensolarado.
Fiz mais cócegas e o parque inteiro brilhou com a sua alegria.
— Vem cá, deixa eu apreciar de perto essa pintura do Van Gogh — pedi tentando manter alguma seriedade.
— O quê?
— Quero te beijar bem aí.
— Você não é nem louco.
— Não sou? — Então me coloquei de um jeito que conseguisse aproximar o rosto do seu sovaco. Ela se virou para esconder a axila. Quase retorcendo o corpo como uma exorcista. À essa altura a garrafinha estava no chão.
— E-eu vou gritar... É sério, vou gritaaaar — ela ria tanto, que podia fazer suas bochechas doerem. E meu peito doía com tanto sentimento. — Jhonathaaaaan!!!!
— Um beijo e eu te solto — chantageei. O seu desespero era música para meus ouvidos.
— E-eeeu vou morrerrrr. Por favor, beija meu cotovelo, meu calcanhar, o sovaco não — continuou gargalhando, as lágrimas de alegria escorrendo por sua bochecha. Meu coração tremia. Acho que isso era amor. Em vez de dizer eu te amo, as pessoas deviam fazer as outras rirem assim.
Um tempo depois, Gabrielle chega se ajoelhou no chão. A soltei. Ela estava tão fraca que só sentou nos calcanhares.
— Sai pra lá, seu tarado de sovaco — enxugou as lágrimas. — Fique longe ou vou te denunciar por... Ai, meu Deus, existe um nome pra esse fetiche? — Cruzou os braços em um X no peito assustada e sorridente. — Seu maluco.
Isso me fez sorrir grande. Reparei que hoje sorri e ri muito mais que o de costume. Não lembrava qual foi a última vez que me senti tão animado e não me culpei por estar feliz. Eu era a pessoa sempre com medo de demonstrar felicidade, prometi para a minha mãe que nunca seria feliz, mas Gabrielle me levava ao extremo. Me intoxicava de alegria. Era minha pausa para respirar.
Às vezes sufocava de tanto me fazer te querer.
Esperei-a recuperar o fôlego e fui ler a mensagem que Carlos tinha me enviado.
"Estava começado a me preocupar. Obrigado por avisar. Se eu dependesse da Gabs... puff. Você é o filho que eu pedi pra Deus".
O que a bebida não fez com meu estômago, essa mensagem fez.
A incerteza de não saber como contaria para ele o que estava acontecendo entre Gabrielle e eu, era uma preocupação que vinha cada segundo conquistando mais espaço no meu peito. Como explicaria que eu não a via mais como a irmã que eu queria proteger, mas como a mulher que um dia iria querer me casar?
Ele tanto podia ficar feliz, quanto pedir que eu nunca mais me aproximasse dos dois. Eles eram tudo o que o outro tinha e apesar de Carlos gostar muito de mim e confiar, ele amava desesperadamente a sua filha e foi claro ao pedir que ela não se distraísse com garotos. Tudo o que um pai queria para o seu filho, é que ele crescesse bem e ficasse longe de problemas.
Eu era o próprio problema. Minha vida era um problema, minha família, minha história, meus pensamentos. Eu era o motivo de Gabrielle não poder mais andar de saia e ter que se manter de pernas cruzadas. Eu era o motivo de ela ter entrado em uma competição de bebida e terminado a noite em vômitos. Eu era o motivo de ela e sua nova amiga terem se desentendido.
Eu era tudo isso, mas ela era viciante demais para eu me afastar.
Dois dias. Ela voltou de viagem a dois dias e eu já não conseguia mais agir de modo natural.
— Nossa, posso ouvir o barulho dos seus pensamentos daqui.
Olhei para ela, agachada no chão com uma expressão boba presa no rosto. Senti as palavras me atingirem com força por todo canto do peito.
— Estou pensando em como contarei para o seu pai que quero a filha dele para mim.Se você passou por aqui, deixe um comentário
Obs: transformei esse capítulo em dois, estava muito grande, postarei a segunda parte entre segunda ou terça.
Comentem muitooooo.
Alguém aí gosta de sovaco?? 🗣️🗣️🆘
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Jhony Trouble
Roman d'amourFamiliarizado com a culpa, com o ódio dos pais e atormentado pelas últimas palavras da irmã desaparecida, Jhony só queria um recomeço para cuidar da pequena família que restou: a irmã caçula que foi abandonada sob seus cuidados ainda bebê. No enta...