Capítulo 20 - Disarm

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Juliette estava novamente sentada num divã em frente à cama, desta vez em seu próprio quarto. Novamente ninguém pôde entrar, novamente não saiu. Entre os lençóis, a princesa se mexia sem parar, como uma criança enérgica num pesadelo. Ao vê-la descabelada, resmungando entre o sono, lembrou-se da primeira vez em que a viu em seu berço, agindo exatamente da mesma forma, o mesmo adormecer. Certa noite, quando a bebê ameaçou acordar em prantos, Juliette apenas esticou a mão, num gesto sem jeito para tentar acalmá-la, tendo seu dedo indicador capturado pelas mãos minúsculas quando os olhos, naquela época já de um verde esmeralda cintilante, abriram-se para ela. Lembrou-se de quando o povo enfurecido ameaçava Thais Braz e sua avó, e Sarah, com apenas cinco anos, interviu, marrenta e determinada. Lembrou-se de que, quando Sarah tinha oito anos, cavalgou pela primeira vez em seu corcel branco, Pégaso, com um sorriso capaz de iluminar a mais densa escuridão. Juliette lembrou-se de sorrir discretamente na primeira vez em que a princesa deixou claro que sabia de sua presença quando, com seus dez anos, sentou-se no parapeito de sua varanda, balançando os pés no ar e observando-a na entrada do bosque até o nascer do dia. Finalmente lembrou-se de seus treze anos e da primeira vez em que estiveram tão perto. De seu entusiasmo, encanto e impulsividade. E depois de uma série de decepções até completar seus dezoito anos, Sarah Andrade ainda se parecia com aquela garotinha. Lembrou-se do baile, de como Sarah foi imediatamente amada pelo povo, de sua energia, força. De seu desespero para salvá-la, quando a defendeu diante de seu reino. Das lágrimas... "Dama Escarlate!"... "Olhe para mim!"... De seu reencontro, de como ela parecia ainda tão benevolente. De suas aulas desastrosas e divertidas. De seu corpo vistoso, da combinação ideal entre o delgado e o musculoso, banhado em suor. De seus rugidos enlouquecedores, do sorriso exausto, elevado. Da promessa em palavras temperadas com um tom rouco e selvagem "Eternamente feroz, eternamente enlouquecido, eternamente domado por você".

A menina conseguia decifrá-la. Diante disso, não deveria ter permitido que ela ficasse em Trotsten e fizesse parte de seu mundo. Deveria ter adivinhado que isso só dificultaria seu objetivo. Mas como saberia que involuntariamente se afeiçoaria à sua implicância, à sua inocência e beleza e humor? Depois de compeli-la a um baile desastroso, dois anos atormentadores, uma sessão de tortura física, uma sessão de tortura psicológica, uma primeira vez indelicada, quase matar seu pai, quase esmagar seu coração... Nada! Nada, nada, nada a fazia desmanchar o sorriso de sol que se abria quando seus olhares se encontravam.

Passado o lapso violento de arrancar o coração de Sarah, Juliette conseguiu finalmente pensar no motivo pelo qual não conseguiu ir em frente. Por um momento, ela a detestou. Detestou estar encantada por sua coragem, seu altruísmo. Detestou estar tão exposta, tão vulnerável diante dela. Detestou ter sido invadida por todas as lembranças obtidas em noites de vigia debaixo de sua janela.

Levantou-se relutante, caminhando em sua direção. Sentou-se na exageradamente grande cama de casal, observando-a, removendo alguns fios escuros que cobriam seu rosto.

Serena. Sarah parecia tão serena para alguém que acabara de passar pelo que passou. Como se a pressentisse, Sarah abriu os olhos. Uma conexão intensa se estabeleceu quando os verdes encontraram os castanhos. As emoções não deveriam caber num espaço tão pequeno, deveriam? Mas cabiam. Cabiam e confrontavam-se, acarinhavam-se, tentavam juntas compreender seu motivo de existir.

Juliette perguntava-se como pôde ir tão longe. Não foi apenas seu amor que a fez atirar-se num plano de vingança soturno. Ela o fez por crer que Kaique era alguém que jamais mereceria um destino tão cruel de uma morte brutal. Pois diferente da maioria, Kaique era bom. Kaique era honesto e gentil. Um herói. Todos os outros tinham seus demônios, mas não ele. E agora ela, diante de Sarah Andrade tranquilamente adormecida em sua cama, estava sendo atingida violentamente pelo peso de suas próprias ações. Precisou arrancar seu nobre coração e quase esmigalhá-lo para perceber que Sarah era justamente alguém que jamais mereceria sofrer. E ela própria infringiu-a mais de uma vez.

Dive (Sariette)Onde histórias criam vida. Descubra agora