Abrindo a porta de casa, o cheiro inebriante do tempero do feijão exalava por todos os lados. O som da cebola sendo refogada junto ao peito de frango na frigideira soava como música.
Rute mexia a panela cantarolando alguma música sem mexer os lábios. Tentei entrar sem fazer muito barulho para que ela não notasse o atraso, porém, mesmo de costas, distraída, ela percebeu.
—Não tente me enganar, mocinha. Por que se atrasou? Sua tia mandou eu ficar de olho em você, e eu sei o que aprontou.
—Eu tenho um motivo perfeito para meu atraso — disse estendo para ela o folheto do concurso.
—Acho melhor a senhorita começar arrumar as malas — disse com um sorriso sugestivo.
Com seu sorriso encantador e um beijo em minha testa, voltou a cozinhar e eu saltitei até meu quarto.
Pegando a caixa que estava embaixo de minha cama, esparramei todos os desenhos que continham dentro dela procurando inspiração. Havia desenhos grandes com muitas cores e materiais usados, contudo, os meus favoritos eram os feitos de aquarela e carvão vegetal.
Um deles fora feito em um papel manchado de café, e o carvão vegetal que deslizei sobre ele formou uma mão forte, segurando uma rosa com espinhos. Um dos espinhos atravessava a mão e a gota de sangue que escorria formava uma pétala que voara da rosa.
Outro desenho era uma menininha que estava de costas e, de vestido quadriculado azul, como o que eu usava quando criança. Ela segurava um pincel e em sua frente estava uma tela. Dentro da tela continha uma casinha no topo de um morro.
—Aurora, venha comer — gritou Rute da cozinha.
Levei a caixa até a cozinha, e, durante o tempo em que eu comia fiquei escolhendo desenhos.
—Não acho uma boa ideia você buscar inspiração em desenhos que você já fez.
—E se eu não pensar em nada?
—Tenho certeza de que vai achar alguma coisa. Descanse a cabeça. Ansiosa desse jeito só vai se atrapalhar.
Ao terminar de comer e lavar o prato, me arrumei para o ballet. O frio que fazia era desanimador e criava o desejo de ficar em casa, todavia eu nem sequer poderia imaginar faltar no ballet.
—Rute, podemos passar na sua casa antes?
—Por quê? — perguntou estreitando os olhos.
—Eu sei que você não gosta que eu fale sobre isso com a Eva. Eu queria compartilhar com ela. Posso? — disse unindo as mãos na frente do rosto.
—Se eu negar, vai adiantar?
—Acho que não.
—Então, vamos lá.
Por todo caminho, em cada rua que passávamos, Rute me escutava tagarelar sem parar. Eram tantos assuntos que ela mal sabia o que responder.
Chegando em frente à casa de Rute, avistamos Manuel parado no jardim com as mãos cobrindo o rosto. O semblante animado de Rute logo fora substituído pela preocupação.
Segurei a mão dela e entramos juntas na casa. Ao nos ver, Manuel moveu a cadeira rodas em nossa direção.
—Ela não está nada bem — falou sem conseguir olhar para a esposa.
No mesmo instante, a enfermeira chegou até nós. Os dois estavam em silêncio e tomei a liberdade de perguntar:
—O que aconteceu?
—Eva passou o fim de semana sem conseguir se levantar da cama depois de ter saído. Sua imunidade acabou baixando mais ainda.
—Eu sinto muito. Se eu não tivesse pedido para ela sair...
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Desenhos de uma Sina
RomanceAurora é uma jovem que cresceu sem saber a verdade sobre seu passado. Encontrada entre as folhas, diante do amanhecer. Bento fora seu melhor amigo, seu confidente, e muitas vezes seu herói. Viver todos os dias entre o conflito do medo e da coragem...