Capítulo 57

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Estava retirando um bolo de maçã do forno quando minha mãe avisou que tia Dulce havia entrado em casa. Arrumei o bolo em um pote e levei até sua casa.

Com três toques na porta, aguardei que ela abrisse. Ela abriu, com os olhos cansados e ainda de avental e touca.

Ela parecia surpresa por me ver ali e ao mesmo tempo envergonhada. Me deu espaço para entrar e vi a situação de sua casa. Continuava da mesma forma que vi da última vez, com algumas rachaduras e paredes mais descascadas. No entanto, estava bem suja, com coisas quebradas e até comida espalhada pelo chão.

—Não se preocupe. Tome um banho, coloque uma roupa confortável. Eu te espero aqui.

Sem responder, ela pegou suas coisas e foi cabisbaixa até o banheiro. Assim que escutei o chuveiro ligado, corri para arrumar tudo. Tirei o lixo do chão, varri tudo o que estava jogado, lavei a louça e passei um pano na mesa. Faltava bastante coisa ainda, mas o chuveiro havia sido desligado. Enquanto ela não saia do banheiro, organizei a mesa com o bolo e café recém coado.

Não sabia o que ela havia passado durante aqueles anos, contudo, era evidente que precisava de ajuda. Pelo tempo que passaria ali, estava decidida a ajudar a mulher que também fora uma mãe para mim.

Saindo do banho, ela começou a chorar. Corri até ela, consolando-a.

—Não precisava ter feito isso, pequena.

—Claro que precisava.

—Não queria te atrapalhar.

—Nunca atrapalha, tia. Agora, vamos comer.

Em uma tentativa de distraí-la, contei com detalhes como foram meus últimos cinco anos sem vê-la. Apesar da distância, ela sabia bastante coisa sobre mim, já que minha mãe a atualizava sobre tudo. A conversa perdurou por horas, arrancando sorrisos involuntários de nós duas.

Percebendo que ela estava mais calma, reuni coragem para perguntar o que eu tanto queria saber.

—Tia, o que foi que aconteceu? — perguntei relutante.

Ela abaixou a cabeça puxando o ar com força. Desviou olhar para uma fotografia pendurada na sala, a qual estava quebrada. A fotografia era dela, com Bento ainda criança no colo de tio Martim.

—Nos primeiros meses que você viajou, Bento escolheu trabalhar dobrado, além da faculdade. Eu estava orgulhosa dele, mas não queria que ele se matasse da forma que estava fazendo. Quanto mais tentava conversar com ele, mais ele se fechava, e para piorar, Martim julgava muitas coisas sobre ele, que não eram verdade, mesmo que Bento não morasse mais conosco.

—Eu me lembro de quando ele decidiu isso — sorri viajando pelas lembranças.

—Querendo ou não, Bento precisava ter contato com o pai, eles trabalhavam para a mesma pessoa, mesmo que com cargos diferentes. Depois de alguns meses, Martim ficou doente e eu decidi sair do emprego que tinha na escola. Escondi o maior tempo possível de Bento, não queria que ele se preocupasse, porém ele descobriu e talvez da pior forma.

—Como?

—Eu saí para buscar alguns remédios, Martim aproveitou para usar o telefone e ligou para o Bento. Ele... culpou o filho pela doença, disse que estava precisando de ajuda e que Bento nunca se importou. Ele chegou a falar coisas piores.

—Eu entendo.

—É claro que Bento se sentiu culpado. Ele chorou no meu colo dizendo que não gostaria de se parecer com o pai dele. Em um só dia ele sentiu culpa e pediu perdão, sentiu raiva e me culpou, sentiu medo e passou o dia ao lado do pai. Não teve um só dia que ele não se sentisse culpado, no entanto, piorava porque Martim não o agradecia por pagar tudo e cuidar da família, ele disse para Bento que jamais sentiria orgulho dele.

—Na época em que éramos crianças, tio Martim não parecia assim. Ele cuidava muito bem de nós dois e nos dava moedas para gastar na vendinha.

—Ele era um ótimo pai, até que as coisas começassem a dar errado e precisar descontar sua frustração em alguém. Ele faleceu quase no final de 1999, somente eu e alguns parentes distantes fomos ao enterro. Bento apareceu só para me levar embora. Depois de tudo, ele voltou a morar sozinho e passava a maior parte do tempo na empresa. Foi conquistando mais coisas me fazendo sentir muito orgulho — disse sorrindo. —Ao mesmo tempo, sinto muita falta do meu filho. O último Natal que passei com ele foi no ano do falecimento do pai, depois, ele só me ligava.

—E nas datas comemorativas como seu aniversário? Dia das Mães? Aniversário dele? — perguntei desacreditada.

—Vez ou outra ele aparece no restaurante para me cumprimentar. Foi ele quem me deu o restaurante de presente.

—É muita coisa para digerir — murmurei para mim, alto suficiente para que ela escutasse.

—Não se preocupe com isso, você me ajudou demais hoje.

—Uma última pergunta. Você passou esses natais sozinha?

—Sua mãe me convidava, mas eu preferi recusar.

—Este ano, sou eu quem estou chamado. Por favor, foram cinco anos longe.

Ela sorriu e segurou minhas mãos. Balançou a cabeça em afirmação se dando por vencida. Abracei ela feliz por conseguir mudar pelo menos alguma coisa.

Percebendo que já estava de noite, me despedi dela. Porém, antes que eu pudesse sair, Bento abriu a porta entrando com algumas sacolas. Nos encaramos por alguns segundos que pareceram horas.

—Fiz compras hoje, e trouxe algumas coisas para você — disse olhando para mãe, que o convidou para jantar.

—Eu preciso ir, está tarde — respondi pegando minhas coisas e caminhando para porta onde Bento estava apoiado.

Saí com um pouco de pressa, esbarrando sem querer nele. Alguns passos de distância, o barulho alto da porta chamou minha atenção. Encostei minhas costas em uma mangueira plantada ali perto e olhei em direção ao barulho. Bento caminhava pretensioso em minha direção.

Dessa vez usava uma calça jeans escura, com uma camisa social preta, que estava um pouco amarrotada. Seu cabelo bagunçado e olhos escuros evidenciavam seu cansaço.

Eu gostaria de ter saído e entrado em casa a tempo. No entanto, meus pés não me obedeciam.

—Aurora — chamou, inexpressivo.

Não respondi seu chamado, apenas desviei o olhar esperando que ele continuasse.

—Obrigado por ter ajudado ela — murmurou.

—Ela sente sua falta — respondi baixo. —Ela me contou o que aconteceu. Sinto muito por tudo. Tenta não deixar ela tão sozinha.

—Eu ajudo como posso — voltara a ser rude. —Não me diga como ajudar.

—Ajuda como pode? — perguntei vacilante. —Bento, se afundar mais no seu trabalho não é a ajuda que ela precisa. Sei que você se esforçou muito para conseguir isso e merece estar onde está, mas sua mãe precisa do filho dela de volta.

—Não, você não sabe como esforcei porque não estava aqui.

—Eu não me importo se eu estava aqui ou não — o tom de minha voz subia cada vez mais, sem que eu percebesse. —O que eu e você somos hoje ou que fomos um dia não me interessa. A única coisa que me preocupa é ver sua mãe neste estado e você não mudar!

Bento não respondeu. Cansada de esperar alguma mudança ou uma resposta que me fizesse acreditar, voltei a andar em direção a minha casa.

Meus pais estavam sentados no sofá da sala, me olhando com aqueles olhares curiosos fingindo não terem escutado nada. Por outro lado, Isa estava debruçada na janela me encarando desacreditada.

—Não vou fingir que não escutei — disse olhando para meus pais. —Me conta, o que aconteceu?

Cruzei os braços fingindo seriedade, enquanto ela fazia sinais com os braços para que eu falasse logo. Contei os detalhes, mesmo que ela tivesse escutado grande parte. 

Desenhos de uma SinaOnde histórias criam vida. Descubra agora