Dádivas Insólitas [5]

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Transubstancie todos os meus bens e relegue suas reminiscências a um antro inatingível. No entanto, restituí-os, para que eu possa deplorar e autoflagelar-me pelo cometimento de tal transgressão. Faz eons que não me encontro imerso em estado de beatitude, razão pela qual se tornou trivial testemunhar o desenlace dos fios da tapeçaria que me envolve, entregar-me ao gozo entorpecente do néctar etílico e mirar o espelho, apenas para encarar uma entidade estranha e desprovida de reconhecimento.

Os vícios, estes nem precisam galantear-me, pois o sentido da audição tornou-se obsoleto e os conselhos perniciosos são expletivos, uma vez que eles já germinam nas profundezas da minha própria cognição, saturada de dádivas intempestivas disfarçadas de obrigações insólitas. Galgar e descer encostas íngremes enquanto me submeto ao capricho da roleta russa tornou-se um ritual consagrado, afinal, abandonei o freio há tanto tempo que a queda inerte e insensível, o escutar desapegos e lançá-los aos ventos, integram minha existência.

Ao emergir para o dia seguinte, sinto o pulsar de uma vida autêntica, acarretada pelos riscos inerentes de encontrar a felicidade no abraço derradeiro da morte. Não me impunha a necessidade de justificar a ninguém o meu estado de angústia, salvo a mim mesmo, pois ninguém deseja sondar o número de adagas que oculto no âmago, já que abomino a troca de corações por punhais. Sagrada seja a dádiva mais inconcebível: a vivência destituída de temor.

Jamais ouse inquirir uma musa estival, ela subjuga não com sua corporeidade esplêndida, juvenil e impoluta, mas sim com o poder das palavras. Diferente dela, sou compelido a desbravar veredas tortuosas através de narrativas onde me posto como vítima, um papel que há muito não me serve, e tal condição denuncia que necessito de socorro.

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