Resido em um pântano de trevas inefáveis, onde cada passo que meus pés, frágeis e sutilmente construídos, ousam pousar, é permeado pelo temor. O solo que eu toco está envenenado por maçãs que, ao invés de escolher o esplendor da virtude, definharam no âmago de sua própria malignidade. Há nelas uma podridão não apenas física, mas ontológica, uma ruína que as corrói de dentro para fora, perpetuando-se na amargura de suas sementes que germinam com um vigor amargo. Quando pressionadas, destilam um líquido rubro, víscido, desprovido de qualquer vestígio de suculência.
Eis que ouço incessantemente a acusação: sou uma dessas maçãs pútridas, desprovido de mérito, um fruto dentre os muitos que não logrou atender às expectativas de outrem. Mas, por qual imperativo divino deveria eu carregar essa culpa? Acaso não é legítimo rebelar-me contra a tirania das expectativas alheias? Seria possível conceber um cenário alternativo, onde o néctar que escorre das maçãs é doce, e a passarela da vida conduz-me por caminhos luminosos - caminhos que, confesso, temo trilhar, incapaz de suportar o preço exigido?
A amargura reside também na farsa dos elogios enaltecedores que me chegam a respeito da árvore do outro lado. Lá, dizem, as maçãs são embebidas em um mel celestial. No entanto, conheço bem a natureza dessas frutas, destituídas de direção, carentes de substância. Como poderia eu ser reduzido a um mero servo de uma macieira desprovida de cor, cheiro ou amor? As denominadas "maçãs do amor", com seu brilho enganador, ostentam uma doçura superficial que oculta sua fragilidade interna. A fina casca de verniz romântico rapidamente cede à decomposição, talvez até mais velozmente do que as que habitam este lado.
Onde, pergunto-me, jaz a vergonha? Onde o olhar que se perde no chão, carregado de um arrependimento tão profundo que nos empurra à renúncia completa? A sensação de inutilidade que me assola é tão densa que já não consigo divisar o caminho por mim mesmo. Rogo, portanto, que alguém me guie - conduza-me, por favor, a uma nova passarela, uma que seja de partida, sem retorno.
VOCÊ ESTÁ LENDO
As Vivências
No FicciónUm conjunto de prosas que eu escrevia quando enfrentava algum problema na vida ou quando eu pretendia praticar a escrita erudita. Legenda Temática: Drama [1] Reflexão [2] Imaginação [3] Romance [4] Relato [5] Sátira [6] Indicações do autor: "A inocê...