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DULCE MARIA SAVIÑON

O avião pousa em São Paulo antes do meio-dia.

Sou recebida pelo clima fechado, o céu coberto por uma camada de poluição e uma leve garoa. Quem precisa de sol, céu azul e ar limpo? Foda-se o Rio de Janeiro e suas belezas naturais!

Estou em casa e isso é tudo que importa.

Ao invés de reativar o sinal da operadora do celular e usar a internet para pedir um Uber, opto por pagar uma pequena fortuna na corrida de táxi, porque sei que serei bombardeada de notificações assim que tirar o aparelho do modo avião.

O dr. Alberto deve estar surtando com a mensagem que enviei antes de embarcar, avisando que precisaria me afastar do trabalho por tempo indeterminado devido a problemas pessoais.

E essa altura, é bem provável que eu já esteja desempregada, mas não tenho condições de lidar com isso no momento.

Um problema de cada vez, Dulce Maria.

O percurso do aeroporto de Congonhas até o apartamento de Poncho dura cerca de vinte e cinco minutos. O meu melhor amigo de infância é piloto, acabou de ser contratado por uma companhia aérea grande e está em Nova Iorque para um treinamento de dois meses, então o lugar está vazio.

O refúgio perfeito para eu me isolar por alguns dias.

Não quero ver nem conversar com ninguém por um tempo, inclusive a minha família.

Especialmente a minha família.

Não pretendo nem mesmo avisá-los que estou na cidade.

Deus me livre de aturar os sermões dos meus pais no meu estado atual.

O prédio não possui portaria vigiada, a entrada é liberada através de uma senha universal compartilhada por todos os moradores. Pego o elevador até o quinto andar e paro no apartamento 505, onde digito outra senha, dessa vez individual, na fechadura eletrônica.

O studio de trinta metros quadrados é pequeno, mas confortável e funcional. A cozinha e a sala de estar são separados por um balcão estilo americano. Presa a ele, está uma mesa de apenas dois lugares. O sofá preto em frente à televisão presa ao painel de madeira que, do outro lado, é um guarda-roupa. O móvel é a única divisória para o quarto, que comporta uma cama queen size. O banheiro fica logo à esquerda e, mais adiante, de frente para uma das janelas, Poncho mantém uma pequena mesa de escritório.

Tudo está limpo e organizado, como sempre.

Poncho é cuidadoso, até um pouco chato, com esse tipo de coisa, diferente de mim, que vivo em um "caos controlado" a maior parte do tempo.

Deixo a mala em um canto, tiro o par de scarpin desconfortável dos pés, largando-os no meio da sala, e jogo a bolsa no sofá-cama, seguindo direto para a geladeira.

Tomara que tenha álcool por aqui.

Poncho costuma mantê-la abastecida com vários tipos de cerveja e, apenas de não ser maior fã de bebidas alcoólicas, hoje preciso encher a cara.

A ocasião exige um porre daqueles.

Para a minha surpresa, as prateleiras estão cheias de mantimentos. E o que chama a minha atenção é ver uma caixa de leite vegetal aberta, morangos frescos em um pote de vidro e sobras de comida chinesa ainda na embalagem.

Que estranho.

Antes de viajar, Poncho sempre limpa a geladeira para nada apodrecer na sua ausência. Considerando o longo período que ficará fora dessa vez, é difícil imaginar que tenha simplesmente esquecido.

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