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DULCE MARIA SAVIÑON

Eu gostaria muito de ser o tipo de pessoa que sofre de amnésia alcoólica.

Esquecer a noite de ontem e usar a cartada do "se eu não lembro, eu não fiz" seria uma verdadeira bênção, porém, assim que recobro a consciência, as lembranças constrangedoras são intactas.

Cada uma delas.

Deus, qual é o meu problema?

Cubro o rosto com o lençol, aperto os olhos e gemo de desespero, com vontade ded me enfiar em um buraco e nunca mais sair.

As últimas vinte e quatro horas não advogam a meu favor, mas juro que sou uma mulher responsável. Não falto ao trabalho, compareço em todos os compromissos, pago as contas em dia, nunca recebi uma multa de trânsito sequer.

Raramente bebo, porque o álcool me deixa fora de mim e detesto a sensação de perder o controle dos meus atos. Antes do fiasco de ontem, só havia ficado bêbada três vezes na vida e todas elas na companhia de Poncho, em quem confio cem por cento.

Mesmo assim, sempre acabo passando vergonha na frente de Christopher.

É como se o universo conspirasse para ele presenciar os meus piores momentos e, honestamente, isso é muito frustrante. Odeio o jeito que o vovô rabugento me olha quando faço besteira.

Como se eu não passasse de uma criança imatura e desmiolada.

E dessa vez não posso nem reclamar. Eu vomitei nele. Literalmente.

Isso depois de ter despejado em seus ouvidos, contra a vontade dele, sentimentos que compartilhei apenas com a minha psicóloga.

Faria qualquer coisa para voltar no tempo e manter a maldita boca fechada. É inacreditável que justo Christopher saiba os segredos que mantenho guardado a sete chaves. Que ainda não contei nem ao meu melhor amigo.

Jogo a manta para longe e vasculho o lugar para me certificar de que estou sozinha. Ele já deve ter ido para o trabalho, o que me enche de alívio. Preciso recuperar parte da dignidade antes de reencontrá-lo.

Estou enjoada, com a cabeça estourando e com gosto de merda na boca. Este é outro motivo que me faz manter distância do álcool: a ressaca.

Sento-me devagar, dando tempo ao meu corpo de se acostumar à posição vertical, e depois me levanto, louca para escovar os dentes e tomar um analgésico.

Em cima do balcão, uma caixinha retangular se destaca no mármore escuro. Curiosa, me aproximo para ler o rótulo e meu queixo despenca.

Saber que, além de ter limpado o meu vômito, Christopher comprou remédio para ressaca, aumenta a culpa e a vergonha que estou sentindo.

Se ele quiser me dar um sermão, vou escutar calada, nem que precise morder a língua. Só dessa vez, como forma de agradecimento.

Depois de engolir um comprimido, vou direto para o banheiro.

Faço uma careta de desgosto ao observar o meu reflexo no espelho. Rosto inchado, olhos vermelhos, olheiras escuras e profundas, além dos resquícios da maquiagem que não foi removida corretamente. Meus cabelos parecem um ninho de passarinho. Tem sido um desafio desembaraça-los depois da descoloração e sei que dessa vez será ainda pior, já que dormi com eles molhados.

Prendo os fios em um coque folgado, escovo os dentes e lavo o rosto com água fria.

Em seguida, preparo um café bem forte, puro, sem açúcar. Preciso de cafeína no meu sistema para enfrentar o dia difícil que terei pela frente.

Acordo de desafetosOnde histórias criam vida. Descubra agora