Abusando da minha boa vontade, Natan Avelar me ligou dois dias depois de me abandonar no terraço de uma festa qualquer, debaixo de um sol capixaba infernal. Como se nada tivesse acontecido.
Aposto que ele queria o paletó de volta.
Boa sorte para ele. Eu já tinha picotado o tecido com uma tesoura de cozinha, e descartado os restos mortais no lixo comum.
Assim que eu cheguei em casa depois da escola o surto do Lucas, que lhe rendeu uma detenção e um trabalho imenso, meu celular tocou e o número era desconhecido.
Eu inicialmente estranhei, porque as únicas pessoas que me ligavam eram Lorena, que era viciada em falar ao telefone, e meu pai muito raramente quando ele tinha a chance.
Atendi e quase desliguei imediatamente quando percebi que Natan Avelar era o dono do tal número desconhecido. Eu devia ter notado. Era um um número da capital de São Paulo.
— Valéria, atendeu rápido. — cumprimentou ele, displicente, como se tivéssemos nos falado no dia anterior.
Vasculhei na minha mente por algum truque de Dolores para lidar com caras como Natan. Mas não encontrei nada. Então, já que o jeito da Dolores não veio me socorrer, optei pelo jeito da Valéria de lidar não só com os garotos, mas com tudo e todos em qualquer situação: um grande e bem mandado dane-se.
— Não sabia que era você.
— Está explicado. Eu também não me atenderia depois de me ver bêbado daquele jeito. — Natan pareceu não se afetar com meu descaso — Então, eu não sei se você sabe, mas eu vou passar algum tempo em Vitória. Um bom tempo. É meio que um estágio de...
— E daí? — não permiti que ele concluísse.
Dessa vez, o efeito surtido foi o esperado:
— E eu queria te perguntar se você vai sair hoje. — falou ele, com a voz vacilando. Não sabia que um Avelar era capaz de sentir insegurança.
— Não fui convidada. — respondi friamente, escolhendo mal as palavras.
Eu estava dando a ideia errada a ele.
— Eu estou convidando. — ele se recuperou, todo maroto, como se eu estivesse ansiando por um convite da parte dele.
— Então estou recusando. — concluí e desliguei o telefone na cara dele logo em seguida, bufando de raiva.
Então, ouvi uns ruídos muito estranhos vindos do banheiro.
Fui até ele e notei a porta entreaberta. Tentei esbarrar e fazer parecer acidental quando abri a porta de supetão, mas não deu muito certo. Acabei caindo no chão do banheiro de joelhos e encontrei um Zacarias debruçado sobre a pia, fitando o espelho com olhos fundos marejados em lágrimas. Os globos oculares dele estavam vermelhos, com vários vasos sanguíneos expostos.
— Zaca! Você está chorando! — falei alto e Zaca estremeceu, com medo de ser escutado pelos outros moradores da casa.
— Não estou. — a voz dele estava embargada.
Zaca endireitou a postura, cobrindo os olhos com as mãos. Abriu a torneira e lavou o rosto, tentando ocultar as lágrimas.
— O que está acontecendo? — perguntei, andando até ele e passando um braço por seus ombros para abraçá-lo. Ele parecia muito nervoso, de um jeito que eu jamais tinha visto. Zaca geralmente era um poço de calma e sabedoria, e estava ali, à beira de um colapso.
Para variar, eu não tinha ideia do que fazer.
— Eu só não estou me sentindo bem.
Ele estava mentindo.
— O que é isso? — uma enorme poça de sangue vermelho-vivo manchava todo o chão em volta de Zacarias. Suas roupas também estavam sujas, e agora que eu estava próxima, pude reparar as olheiras fundas em seus olhos e a palidez de sua pele. Seus lábios estavam ressecados, e quando eu fiz menção de atirar os braços ao redor dele, Zaca começou a tremer, como se não se aguentasse em pé.
— Zaca, o que você está escondendo de mim? De todos?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Onde Há Fumaça
Ficção Adolescente"Eu tinha que sair de Viveiro antes que alguém pudesse cogitar que houve um crime por trás do incêndio que deixou vítimas e feridos, e destruiu a minha antiga escola. Apesar de eu me odiar por ter feito a escolha de sair da cidade como uma covarde...