24.2 | ou ❝fogo, fogo, fuga❞

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Justo quando eu achava que nada podia piorar, uma caloura estúpida ergueu a mão no ar, e Lucas passou-lhe a palavra.

— Lucas, ah... as Empresas Avelar já encontraram algum suspeito? — disse a idiota, enrolando o cabelo nos dedos.

— Os detetives acreditam que os suspeitos não permaneceram na cidade, então, estão avaliando os registros de quem evacuou Viveiro por volta do segundo semestre do ano passado. — respondeu ele. Meu rosto começou a pegar fogo.

É óbvio que Lucas Avelar não entregaria um trabalhinho qualquer, com informações geográficas da região ou algo assim. É claro que ele descobriria mais do que deveria saber. Ele tinha que apresentar todo um dossiê sobre o incêndio, e ainda deu um jeitinho de fazer parecer que eu poderia ter alguma coisa a ver com ele.

Embora eu tivesse. Bastante coisa a ver com o incêndio.

Mas não como ele pensava.

Eu levantei imediatamente quando as luzes do auditório se acenderam. Não corri e nem estrangulei Lucas, embora fosse o que eu queria fazer. Quando empurrei a porta para sair, as imagens dos escombros da Haroldo Santini após o incêndio me assombravam.

Era disso que João tinha falado. Sobre como as coisas tinham mudado naquela cidade, e para as pessoas que ainda viviam nela.

Fui andando sem pressa e sem perceber até o refeitório, quando Lucas me alcançou, se postando na minha frente. Estávamos sozinhos. Ele trazia no rosto aquela expressão vitoriosa, característica dos Avelar. Mas ele não ganharia tão fácil. Ele tinha umas satisfações a me dar. Enchi o peito de dar antes de falar:

— Primeiro você traz o João até aqui. Depois, dá toda essa palestra no nível Investigação Criminosa sobre o incêndio em Viveiro, sobre o qual você acha que sabe tudo, mas não sabe de nada. Qual é a sua, Lucas?

— Engraçada a sua reação. — comentou ele, erguendo uma sobrancelha — Se eu não te conhecesse, Corrêa, acharia que tem alguma coisa a ver com o incêndio.

Um frio me percorreu a espinha.

— O que você quer dizer com isso? — perguntei, esperando que minha insegurança não transparecesse em minha voz. Lucas me olhou fixamente por uns três segundos, e depois desviou o olhar. — Lucas! — insisti.

— Agora você quer ouvir o que eu tenho a dizer?

Eu apenas o encarei com escárnio, me recusando a responder.

Lucas hesitou. Transferi o peso de uma perna para a outra. Ele endireitou a postura e sua expressão se suavizou.

— Valéria, eu não precisava ter me dado à metade do trabalho que tive para saber que você está escondendo alguma coisa sobre aquele incêndio. Eu não disse a verdade na palestra, porque essa informação não está nos registros policiais. Mas você foi a única pessoa que evacuou da cidade após o incêndio. Curiosamente, você está no registro de pessoas desaparecidas, cujos corpos nunca foram encontrados. — ele me encarou com aqueles olhos azuis — Eu te conheço. Fica andando por aí com essa história de que seu pai estava passando por dificuldades financeiras, e é por isso que você meio morar com a sua mãe. Sendo que você detesta o seu padrasto, e essa cidade, mais do que tudo. Você preferiria morar nas ruas do que na mesma casa que ele, se tivesse a opção.

Eu estava... impressionada?

Depois de tanto tempo escondendo a verdadeira razão de eu ter me mudado para Vitória, Lucas estava a dois passos da verdade.

— Por que você não me entregou? — exigi saber — Se já descobriu que eu sou a única pessoa que fugiu. Se tem tanta certeza de que eu sou culpada, ainda que aparentemente não consiga provar nada. Porque a polícia não está nesse momento na porta da minha casa?

Lucas fitou o vazio. Sua expressão intensa me fez lembrar do Lucas que eu costumava conhecer. O Lucas pelo qual eu cheguei a ser apaixonada, por uns cinco minutos.

Como se lesse meus pensamentos, Lucas respondeu:

— Eu não ia te entregar para a polícia sem te dar a chance de se explicar. Porque eu sou seu amigo. — e voltou a olhar pra mim, brincando com o próprio cabelo — Quer você ainda queira estar na minha vida, quer não.

— Não, você não é. — neguei automaticamente, ruborizando.

— Eu sou sim. — Lucas alterou o tom de voz — Não é só porque meu irmão se meteu entre nós que eu não pense em você com frequência. Eu me preocupo com você. E não é porque eu deixei de te contar que tenho um irmão gêmeo, dinheiro no banco e... bem... Lorena... — ao perceber meu olhar cético, ele emendou: — Certo, a parte da Lorena eu admito que não tem desculpa. A questão é que essas mentiras foram contadas por um bom motivo. Elas também não mudam o fato de que nós nos temos uma conexão. Eu senti desde a primeira vez que te vi, com seus coturnos e fones de ouvido chamativos, visitando o Aquário para não ter que passar tempo com seu padrasto. Os passeios de skate, os restaurantes secretos no centro da cidade, cada conversa e cada momento desses foi real. Não teriam sido se você soubesse que eu tenho alguns zeros a mais no cheque. Definitivamente não teriam nem acontecido, se Natan soubesse que você existia.

— Eu não entendo. — murmurei — Por que você apresentou esse seminário sobre o incêndio, então?

— Porque sabia que viria falar comigo. E que nos entenderíamos. — respondeu ele, simplesmente, piscando o olho esquerdo e sorrindo em seguida, como ele sempre, sempre, sempre fazia — E que eu faria você perceber que, se você soubesse sobre o meu passado, você nunca teria falado comigo. Eu não podia perder a oportunidade de ter alguém como você na minha vida.

Eu sentia algo se suavizar em meu peito. Ele estava vencendo. Me ganhando.

Mas eu não ia desistir tão fácil.

— E o João?

— Imaginei que você sentiria falta de seus velhos amigos, e ele meio que estava precisando sair um pouco de Viveiro. Não ia me custar nada trazê-lo comigo, então o fiz. Dolores é uma menina doce, aliás, eu a conheci também. E o Nicholas... bem, ele não é de falar muito.

— Você... você conheceu Nick? — titubeei.

— Eu presto atenção nas coisas que você fala, Valéria.

Lucas não tinha revelado a verdade sobre mim a ninguém. Porque nem Nicholas, nem Dolores, nem ninguém lá, exceto João e meu pai, sabiam sobre o meu paradeiro. Ele guardara o meu segredo, mesmo sem ter ouvido o meu lado. Ao saber que as pessoas da cidade achavam que eu tinha sido uma das fatalidades do incêndio, mesmo não estando de bem comigo, ele não falou nada.

Um silêncio estranho pairou entre nós.

Em seguida, uma sensação de conforto e familiaridade se instalou. Eu estava com saudades de Lucas. Estava aliviada por ele saber nem que fosse uma fração da verdade, e ainda assim estar diante de mim, sem julgamentos, e sem perguntas a fazer. Estava empolgada pela perspectiva de um novo começo entre nós. Pela perspectiva de tê-lo de volta.

— Lucas?

— Corrêa. — respondeu ele, sorrindo de lado, aquele sorriso Lucas Avelar.

— Você venceu.

Onde Há FumaçaOnde histórias criam vida. Descubra agora