24.1 | ou ❝fogo, fogo, fuga❞

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Com as coisas resolvidas entre Natan e eu, e um certificado por escrito de um profissional de que Zacarias estava bem, eu senti que poderia voltara viver a minha vidinha capixaba sem grandes dramas.

Minha última conversa com João era o que pesava minha consciência, suas palavras ecoando na minha memória com frequência. Se eu não estivesse tão convencida de que ninguém podia saber que eu tinha sobrevivido ao incêndio, para o bem de todas as pessoas que eu amava naquela cidade, eu teria cedido. Mas meu pai sabia a verdade, e João também. Já era uma pessoa a mais do que eu pretendia inicialmente. Duas pessoas em risco.

Não era à toa que eu estava tendo pesadelos de novo.

Eu estava conformada com o meu destino. Sabia que eu nunca voltaria à minha cidade natal, e, ainda que me custasse admitir... eu estava meio que feliz em Vitória. Consegui construir uma nova vida, o que não me parecia possível no começo de tudo.

De volta à rotina escolar, cheguei ao colégio Leonardo da Vinci segunda-feira com ânimos melhores, empolgada para a aula de Alan Jordan.

— Bom dia, Vale.

— Bom dia, Alan.

— Faz tempo que não vejo esse sorriso. — comentou ele, sorrindo também. Alan tinha um sorriso muito bonito, na verdade. Um sorriso Jordan.

— A vida é doce. — cantarolei, tentando focar nos pontos positivos da minha nova vida.

— A vingança também, não é?

— O que você quer dizer com isso?

— Hoje é o dia. O Sr. Avelar apresentará para a classe aquele trabalho sobre Viveiro.

— P-perdão? — engasguei.

— Lembra quando Lucas veio te incomodar na minha aula, há alguns meses? Eu pedi que ele fizesse um trabalho sobre Viveiro, uma vez que ele parecia tão interessado na senhorita Valéria Corrêa. — lembrou ele — Nunca pensei que Lucas Avelar pudesse se sobressair em alguma coisa que não fosse Biologia, mas ele realmente se esforçou nessa tarefa. Ele pediu o auditório. Vai apresentar o seminário para a escola toda.

Observei as outras pessoas caminhando na direção do auditório, e após despedir-me de Alan, juntei-me a elas. Peguei um lugar discreto na quarta fileira. Não pude deixar de notar, é claro, um bando de primeiranistas na primeira fila, babando e cochichando sobre Lucas no palco. Ele estava de costas para o público. Não consegui ver sua expressão.

Após cinco minutos, o auditório estava lotado e Lucas segurou o microfone de palestras e caminhou até a grande tela onde estaria sendo exibido um vídeo. Eram imagens aéreas, mas minha Viveiro estava plenamente reconhecível. A lanchonete do tio Edu, o hospital, o parque, a casa do Carlinhos... a mansão do Carlinhos, na verdade. O clube. Quase pude ver a mim mesma correndo de um lado para o outro, andando de bicicleta com Nicholas... pegando o ônibus escolar com Dolores.

Apenas minha antiga escola estava diferente. Carbonizada. Destruída.

Meus olhos se encheram de lágrimas e, então, Lucas mencionou o incêndio.

— O Município de Viveiro fica no interior do Estado de São Paulo. É uma cidade pacata, sem muitos acontecimentos. Ou melhor: sem acontecimentos que despertam o interesse da mídia. Precisei aprofundar a minha pesquisa para saber sobre um incêndio devastador, que ocorreu no ano passado em uma escola de Ensino Médio, como a nossa.

"A Fundação Haroldo Santini é uma instituição de ensino fundada em 1940, pelo químico e professor que recebeu seu nome. Apesar de ser voltada ao ensino de adolescentes, muitos de seus alunos são direcionados a um curso técnico ao se formarem, para se tornarem qualificados a trabalhar na indústria química da região, voltada para produtos cosméticos.

"No ano passado, um incêndio consumiu um dos pavilhões da Fundação Haroldo Santini. Conforme o tenente do Corpo de Bombeiros, Claudiomiro Soares, as chamas iniciaram entre o laboratório de Química e as salas de aulas e, em seguida, se alastraram rapidamente pelas paredes de madeira e por um toldo sintético, que cobre o corredor aberto da instituição.

"Três caminhões do Corpo de Bombeiros foram utilizados para o combate do fogo. O controle inicial das chamas foi realizado por moradores das redondezas, preocupados com a rapidez com que o fogo se espalhava. O tenente estima que cinquenta por cento do primeiro prédio tenha sido consumido inteiramente, sem esperanças de recuperação. Ainda não se sabe o que teria provocado o fogo. A melhor suspeita é uma explosão no laboratório em que aulas práticas de Química eram ministradas. Também não foi possível identificar um responsável, ou seja, não houve punição criminal até agora.

"Meu pai tem contatos na polícia civil de São Paulo, e sua influência conseguiu dados exclusivos, não divulgados pelos jornais. Mas as primeiras coisas primeiro. Segundo depoimentos de vítimas e testemunhas, por volta das sete da manhã uma fumaça inodora, posteriormente identificada como fumaça química, começou a ser liberada pelas janelas do setor de Química da Haroldo Santini. O serviço especial para acidentes, 192, foi acionado, mas por uma série de erros burocráticos, um severo atraso resultou em catástrofe.

"Em poucas horas o incidente químico consumiu toda a escola pública em chamas. Incontáveis vítimas... a ação dos bombeiros foi incessante, porém não o suficiente para conter as mortes, e os imensuráveis feridos. Os hospitais de Viveiro estiveram lotados por semanas.

"É de se esperar que um incidente como esse tenha um culpado. Mas com o laboratório de Química destruído, a escola em ruínas, quem poderia descobrir a identidade de um possível incendiário? Poderia ser qualquer um dos dois mil e trezentos alunos da Fundação Haroldo Santini, sem contar os professores e funcionários.

"A delegacia de polícia de Viveiro estava com um verdadeiro labirinto nas mãos. Contudo a maior parte das verbas públicas foi destinada à reconstrução da escola e aos hospitais públicos, então... por falta de recursos, as investigações foram abandonadas.

"Meus interesses pessoais no caso, como o Professor Alan fez questão de explicitar em nosso último encontro, me levaram a um certo investimento. Meu pai financiou as investigações por um mês e contratou detetives que descobriram um sistema de intranet da escola para acessar algum arquivo de vídeo das câmeras lá instaladas. Obviamente eu não tenho direito de interferir pessoalmente nas investigações, mas como o capital funcional é das Empresas Avelar, provavelmente, e em breve, teremos algumas respostas.

"Eu só posso esperar que o culpado seja encontrado onde quer que esteja, e que todas aquelas famílias sejam compensadas por sua imprudência. Obrigado."

Uma salva de palmas congratulava Lucas Avelar pelo seu excelente trabalho, mas, para mim, a sala estava muda.

Achei, por um minuto, que meu coração havia parado de bater.

Onde Há FumaçaOnde histórias criam vida. Descubra agora