37.1 | ou ❝adeus, vitória!❞

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Tudo estava pronto para a minha partida. E decidir empacotar tudo que eu queria levar me tomou menos tempo do que o esperado. Por alguma razão, eu conseguira resumir meu último ano em apenas uma mala grande, e uma bolsa de mão.

Não senti vontade de levar muito de Vitória para Viveiro, e acho que a razão para tanto é bem simples: eu não precisava carregar comigo o que já estava no meu coração.

E a única coisa que eu realmente gostaria de levar a Viveiro, eu não poderia.

Coloquei a mão direita sobre o coração, em uma tentativa inútil de afrouxar o aperto que eu viria a descobrir que nunca passaria.

Os próximos meses seriam difíceis e eu sabia muito bem disso. Sentei naquela cama que não era mais minha, e olhei pelo vidro da varanda. Eu sabia que Lucas não apareceria. Ele odiava despedidas, e eu mais ainda. Lembrei da nossa primeira despedida, e por mais que eu estivesse desesperada para voltar para a minha então casa, lembrei do quanto tinha sido dolorosa.

Para se poupar desse tipo de dor, ele jamais me levaria ao aeroporto, tampouco decidiríamos passar nossos últimos minutos fazendo nada de extraordinário. Era sempre um "até logo", puro e simples, embora o "logo" demorasse bastante.

Ainda assim, eu me alimentava da expectativa de que ele aparecesse pela última vez.

Nunca vou me esquecer de como me senti quando ele escalou a minha varanda, numa tentativa engraçadinha de imitar Romeu e Julieta, muito antes de sabermos que acabaríamos sendo os dois no palco, e que justamente isso viria a ser o gatilho que nos levaria a ficar juntos; sabia que devia me sentir culpada por isso, com toda história de Lorena e Natan, mas não tinha como.

Alguma coisa em mim sabia que ele pertencia àquele momento, como titular incontestável das minhas alterações cardíacas.

Quanto a Natan, eu ficava feliz por não ter que pensar mais nele. Desejei a ele coisas boas, e prometi a mim mesma que ele nunca mais cruzaria a minha mente.

E Lorena, bem... se eu não a conhecesse, provavelmente a odiaria pelo que ela tinha feito com a minha vida. Mas, anormalmente, eu não tinha um pingo de ressentimento em relação a ela. Pelo contrário, me sentia quitada, e em dia com meus erros.

Fechei os olhos e inalei o ar a minha volta. Eu ia sentir saudade daquilo.

Não daquela cidade, ou daquelas pessoas, ou daquela vida.

Mas de ter outro pensamento na minha cabeça que não o incêndio na Haroldo Santini.

Ia sentir falta dos olhares assaltados de Lucas quando Natan não estava olhando; ou de como me senti quando descobri sobre os gêmeos. Minha amizade improvável com Lorena. A família que construí em Zacarias.

Sobretudo, sentiria falta de ter à minha volta pessoas que não faziam ideia do que eu tinha feito, e pessoas que, embora soubessem, não me julgavam por isso. Acho que essa é a maior peculiaridade a respeito de uma vida em Vitória: você custa a fazer amigos, mas quando os faz... são as pessoas que você vai querer ter por perto para sempre.

Apoiei as mãos no colchão e me ergui. Olhei para o painel à minha frente, onde eu costumava deixar as fotografias da minha vida anterior. As fotos com Nicholas, João e Dolores há muito haviam desaparecido, dando lugar a uma série de fotografias tiradas por Lucas. Tartarugas marinhas na enseada, o sol se pondo por trás do Morro do Moreno, e algumas fotos minhas nas mais variadas situações constrangedoras: depois do meu primeiro tombo de skate e com o nariz sujo de mostarda após devorar um cachorro-quente com Zaca e Ava na pracinha, comemorando sua saída da reabilitação.

Bem ao centro, a única foto que não havia sido tirada por ele. Nosso beijo durante Romeu e Julieta.

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, e eu podia jurar que ela deixaria uma marca. Eu solucei para impedir que mais lágrimas – ou marcas – se formassem.

— Então é verdade. – Zaca falou às minhas costas; me virei e deparei-me com ele recostado no batente da porta – Você vai mesmo me deixar.

— Eu não vou te deixar. – garanti, e caminhei até ele. Eu nunca me cansaria de abraçá-lo, e, aparentemente, nunca seria capaz de segurar as minhas lágrimas na presença dele. Era um conforto saber que Zaca recebeu alta pouco antes e eu ir embora, mas, por alguma razão, eu não me sentia segura com isso. Sem Valéria Corrêa por perto, ele estaria à mercê do maior séquito de imbecis de que se tem notícia. Ou seja, minha mãe, Marcos e José Renato.

— Prometa a mim que você vai se cuidar. – pedi – Eu não estarei aqui para te vigiar, Zacarias, e você vai ter que dar um jeito de se manter em pé sem mim.

— Isso vai ser muito, muito difícil. – admitiu ele – Cara, eu nunca tinha parado para pensar no quanto eu preciso de você aqui. Essa casa vai ficar tão vazia sem você.

— Minha vida vai ficar vazia sem você. – falei, e as lágrimas que estive tentando conter rolaram inevitavelmente.

Ficamos parados na porta por alguns minutos, contemplando o quarto que, de fato, parecia vazio. Embora eu ainda não tivesse removido todas as coisas, pois, como disse, não pretendia carregar nenhuma delas comigo, eu já podia sentir que alguma coisa estava em falta.

Me virei para Zaca e falei:

— Assim que você se recuperar dessa droga que aquela louca fez com você, – ignorei sua cara de reprovação para o que eu tinha dito, porque aquela história de depressão clínica para mim sempre seria culpa de Andressa Dante, e psiquiatra nenhum poderia me convencer a responsabilizar um desequilíbrio de serotonina e coisas do gênero – você vai estar na melhor universidade do Brasil, que por acaso fica em São Paulo. Em algum tempo, quando eu terminar de cumprir as minhas obrigações do incêndio e a polícia sair do meu pé, estaremos juntos novamente.

— Isso se você não esquecer que eu existo.

— Você é meu irmão. – agarrei os braços de Zaca com as duas mãos, e me contive para não sacudi-lo; era ridículo ele ainda pensar que era só mais um qualquer na minha vida – Não tenho como esquecer que você existe.

Um sorriso tímido se formou, e logo Zacarias se desvencilhou dos meus apertões para me abraçar e falar no meu ouvido:

— Eu meio que te amo, Valéria Corrêa.

— Eu meio que te amo também, Zacarias Eifler.

— Então, – fez ele, quando finalmente nos soltamos – está na hora do juízo final. Você acredita que vai realmente voltar para Viveiro depois de tudo o que aconteceu? Entrar na sua antiga escola, encontrar seus antigos amigos, ficar varanda-a-varanda com...

— Com o Nicholas.

— Você está pronta para isso?

Não tinha jeito de se estar pronta para isso. Quer dizer, quem está cem por cento confortável com seu primeiro amor sendo a testemunha de acusação do caso que a polícia está construindo contra você, sem mencionar que você é inocente? Céus, eu não queria pensar naquilo. Não queria pensar no quanto eu parecia culpada.

Onde há fumaça, há fogo.

Ou nem sempre.

No entanto, eu nunca cheguei a responder essa pergunta. Uma buzina vinda da rua interrompeu minha última conversa frente a frente com Zaca.

— Alan chegou. – sentenciou ele. Mas eu sabia que não era Alan.

Eu conhecia aquele som como nenhum outro, e eu sabia exatamente o que era e de onde vinha.

E vinha da caminhonete de Lucas.

Onde Há FumaçaOnde histórias criam vida. Descubra agora