Não bastasse o sol escaldante de Vitória naquela tarde, o calor era agravado pela umidade típica da capital, que ficava em uma ilha. Se eu estava derretendo sob o sol do estacionamento enquanto esperava por Lucas, quando chegamos à praia eu já tinha deixado de existir.
Ao menos, era o que eu gostaria.
Após estacionarmos a caminhonete na orla lotada, caminhamos até a faixa de areia onde tinha um enorme alambrado em volta de um retângulo de fita laranja, demarcado entre dois gols, onde os mauricinhos iriam jogar futebol.
O campo de areia era cercado por arquibancadas de aço, onde se empoleiravam os mais variados tipos de gente: patricinhas, pirralhos, atletas, um pessoal alternativo. A imprensa estava lá também, para cuidar da vida dos garotos famosos que iam jogar. O sol estava queimando o cocuruto da minha cabeça, e uma música horrível berrava para fora de todos esses alto-falantes.
Eu não sabia o que estava fazendo ali.
Eu nem gostava de futebol. Nem assistia Malhação.
Mas Lucas estava tentando ser legal, e a alternativa era ir para casa desfrutar da agradável companhia do meu padrasto.
Lucas, que percebeu que eu não estava no meu elemento, se ofereceu para ir até algum restaurante na orla para comprar uma água para mim. Frente a uma provável desidratação, eu concordei, mas me arrependi quando fiquei sozinha no meio de tudo aquilo.
Eu cogitei dar o fora várias vezes, e só não fiz Lucas e eu nos divertimos muito no caminho que fizemos até a praia. Conversamos sobre fotografia, filmes antigos e lugares que ele gostaria de conhecer. Era uma grata mudança por ter uma conversa normal, ainda mais com um garoto como ele.
Lucas era tão inspirado que até eu estava com vontade de fazer alguma coisa significativa com a minha vida, um sentimento que tinha me abandonado depois do incêndio.
E era por isso que eu ia continuar para debaixo do sol quente, esperando que ele voltasse. Porque Lucas me fizera bem no último verão, quando meu maior problema era fugir da companhia do meu padrasto, e estava me fazendo bem naquele momento, ao me fazer pensar que talvez eu não tivesse arruinado tudo me mudando para Vitória.
Eu o esperava na entrada junto ao alambrado. O lugar estava lotado, e se eu saísse do lugar em que Lucas me viu pela última vez, não nos encontraríamos de novo.
Justo na hora que eu me virei para dar uma olhada no evento, para ver se o tal jogo já tinha começado, fui atingida com tanta força, no meio das minhas costas, que caí de cara do chão.
Correção: de cara na areia quente.
Eu me ergui imediatamente, confusa, espanando a areia do rosto e da frente da minha blusa. Uma dor pulsava nas minhas costas, me lembrando da Educação Física mais cedo. Eu tinha levado uma bolada?
As chances eram altas. Eu odiava Educação Física porque as bolas geralmente davam um jeito de me encontrar.
Não conseguia abrir os olhos direito, por causa da areia. Eu já estava ouvindo alguns comentários maldosos, algumas risadas e deboches. Uma voz feminina perguntou se eu estava bem. Respondi que estava e saí andando, sem saber exatamente em que direção, piscando para remover a areia dos olhos. Quando me estabilizei, enfiei a mão no bolso traseiro dos meus jeans para alcançar o celular, ligar para Lucas e dizer que eu já estava satisfeita com os eventos esportivos do dia.
Antes que eu pudesse digitar, ouvi uma voz masculina me gritando:
— Ei, garota! Me desculpe! Eu errei a mira, não vi você...
Nem olhei para trás, indiferente à admissão de autoria do meu desastre.
— Não se preocupe. — falei alto em resposta, voltando a minha atenção para o meu celular.
— É sério, quero te explicar o que aconteceu. Não foi a minha intenção... — e começou a contar uma história que eu já sabia como terminava: com a minha segunda humilhação pública do dia — A questão é que eu realmente, realmente sinto muito.
— Aposto que sim. —revirei os olhos, mas ele não viu por que eu estava de costas.
— Nossa. — ele soltou uma risadinha de nervoso. Eu ignorei-o pela terceira vez e apressei o meu passo, porque agora ele corria para me acompanhar. — Deixa eu te compensar por esse incidente. Eu estou no jogo, mas não trouxe convidados. Você pode assistir de camarote. E nós vamos jantar depois com os atores.
— Eu passo.
Mesmo depois desse corte, ele continuou me seguindo.
Estava na hora de mostrar ao babaca que quando uma garota diz não, ela quer dizer não. Me virei para ele, pronta para dar-lhe uma bela lição, e meu queixo caiu praticamente até os meus joelhos quando eu dei uma boa olhada em seu rosto.
Os olhos do infeliz eram tão azuis que pareciam ter profundidade. Lábios finos e desenhados, maxilar recortado, bochechas rosadas e sobrancelhas grossas, levemente arqueadas. Mesma altura, mesmo tipo físico, mesmas feições. A exceção dos cabelos, que eram mais claros. Talvez ele fosse um pouco mais alto, mas pouco.
O garoto à minha frente era simplesmente idêntico a Lucas Avelar.
Não apenas muito parecido. Idêntico.
Eles poderiam ser irmãos gêmeos.
Eu descartei a ideia por dois motivos: a uma, Lucas nunca tinha mencionado um irmão. A duas, a julgar pelo relógio de grife no pulso daquele estranho, pelo corte de cabelo de mauricinho e por ser um dos jogadores no evento beneficente, ele devia ter muita grana.
A areia devia ter danificado meus olhos. Ou o calor, os meus neurônios. O desconhecido tinha a mesma expressão de educada curiosidade que eu via em Lucas.
— Está se sentindo bem? — ele falou, e piscando enormes olhos azuis de Lucas Avelar para mim.
— Estou.
— Por que está me olhando assim?
— Você é... — titubeei — assustador.
— Assustador? — disse ele com humor — Bem, obrigado.
— Não foi isso que eu quis dizer... é... que... — meu coração estava martelando contra o peito e minhas mãos estavam tremendo.
Aquele garoto me deixava nervosa.
Eu devia sair de perto dele o mais rápido possível.
— Eu sou o Natan. — ele se apresentou, sem estender uma das mãos para mim — É sério, venha comigo. Você vai ver que eu não sou nada assustador. — e jogou o cabelo para longe dos olhos, do mesmo jeito que o Lucas faz.
Aquilo foi a gota d'água.
Dei as costas para ele e saí pisando fundo, procurando pelo Lucas de verdade. O outro começou a me seguir, e eu comecei a correr. Digitando uma rápida mensagem a Lucas com uma desculpa esfarrapada, entrei no primeiro táxi que eu vi na frente.
Me convenci, após chegar em casa e tomar um banho quente, que eu estava alucinando. Aquele garoto nem era tão parecido com Lucas.
Devia ter sido por conta do calor.
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Onde Há Fumaça
Ficção Adolescente"Eu tinha que sair de Viveiro antes que alguém pudesse cogitar que houve um crime por trás do incêndio que deixou vítimas e feridos, e destruiu a minha antiga escola. Apesar de eu me odiar por ter feito a escolha de sair da cidade como uma covarde...