30.1 | ou ❝em acordo com mário ney❞

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Acabei convidando Natan para assistir a um dos ensaios da peça no dia seguinte. Agora que ele estava em Vitória, eu sentia que não devia me afastar dele nem por um segundo. Era o álibi perfeito para me livrar de Lucas, que me mandava olhares furtivos ao longo do ensaio, fazendo meu rosto queimar.

Eu já havia passado todas as minhas cenas com a Ama de Julieta e o Frei Lourenço, e Zaca ainda não havia chegado para ensaiarmos as cenas com o Romeu. Andressa estava a ponto de enlouquecer em seu celular, ligando para ele sem parar. Então, ela desistiu e pediu para que eu descansasse enquanto os substitutos ensaiavam as cenas de Romeu e Julieta.

Era Ava quem contracenava com Mário Ney desde que ela se tornou minha substituta, o que contribuía para que a minha vida não fosse o inferno costumeiro. E, com Natan assistindo, eu acabava me esforçando para que ele me achasse uma boa atriz em vez de um ser humano patético em roupas de época, e me esquecia de ficar obcecada por Mário e Andressa no mesmo cômodo.

Ava subiu ao palco, e estava com duas enormes manchas de rubor na face, o que significava que Andressa provavelmente a estava enlouquecendo tanto quanto a mim.

"Mas qual luz abre a sombra deste balcão? Eis o oriente é Julieta, e o sol!"

Enquanto ouvia Mário enunciar tão mal as palavras de amor mais belas da literatura inglesa, pude sentir uma presença se aproximando de mim nas cortinas, de onde eu assistia o ensaio.

— Que tragédia. — ele falou, apoiado com os braços cruzados numa das pilastras que erguiam a coxia, a poucos passos de mim.

— A peça ou o Mário Ney atuando? — brinquei, tentando tirar um pouco do peso do momento. Sem sucesso.

— Ou nós.

Me virei de volta para o palco, sem coragem de encará-lo.

— Lucas, você não tem outra pessoa para irritar? — reclamei, procurando meu texto desesperadamente na coxia escura.

— Até tenho. — ele falou, me provocando — Mas depois da enseada, não consigo nem querer irritar outra pessoa.

Eu congelei. Olhei para os lados, nervosa, com medo de Natan ter escutado, mas ele permanecia absorto na apresentação de Ava e Mário.

— Já pedi para esquecer aquele dia. — murmurei rispidamente.

— O que você disse? Não consegui ouvir. Pode falar mais alto? — tripudiou ele, se divertindo com a minha confusão. Ao ver que eu não ia entrar na dele, Lucas prosseguiu, mais brando: — Impossível esquecer sobre a enseada. É o único dia, desde que você chegou, que deu para ter certeza do que você sente por mim.

— Eu gosto de você. — falei sem pensar, preocupada em controlar meu tom de voz — Você sabe disso.

— Sei?

Antes que eu pudesse responder, Andressa gritou do outro lado do palco:

— Lucas Avelar! Sua deixa! — e a voz dela estava carregada de estresse. Mas é claro, seu precioso Mário estava ensaiando. O maldito Lucas não deveria atrapalhar o sucesso dele.

Eu não suportava mais.

Saí dos bastidores e fui me sentar ao lado de Natan na primeira fila da plateia. Natan estava emburrado como meu pai quando eu chegava em casa seis horas da manhã, bêbada, com uma Dolores igualmente bêbada a tiracolo.

— Você está bem?

— Estou. — respondeu ele, distraído — Não pareço bem?

— Se por "bem" você quer dizer "cara amarrada desde que eu pisei fora do palco", sim.

Ele não respondeu. Sequer me olhou. Seus olhos estavam fixos no palco, em Lucas, mais precisamente. Eu podia ver suas pupilas acompanharem os movimentos de esgrima da espada de Mercúcio.

— Qual é o problema? — insisti.

— O meu problema com o meu irmão estar apaixonado pela minha namorada? — falou ele, sem esconder o sarcasmo — Nenhum.

— Não precisa falar assim.

— Eu só acho que se eu ficasse andando por aí com a Lorena, por exemplo, você não ia ficar satisfeita também. — provocou.

— Eu não ia me importar, porque confio em você.

— Aí é que está. — finalmente, Natan se virou para me olhar nos olhos. — Eu não confio no Lucas.

— Ele é seu irmão.

— Isso quer dizer que eu sei de quem estou falando.

— Natan, não temos cenas juntos... — respirei fundo, tentando apaziguá-lo. Mas sua expressão era de raiva absoluta, e, francamente, eu não estava gostando nem um pouco daquela conversa.

— Ele estava conversando com você bem ali. — ele apontou para a cortina do lado direito do palco — Eu vi.

— Natan, essa peça é importante para o Zaca. Portanto, é importante para mim. — falei meio alto demais. Pude ver Lucas se empertigando no meio de sua cena, como se estivesse se inclinando para escutar — Além disso, é minha responsabilidade agora, não só com as minhas notas nessa escola, mas com as do garoto que é como um irmão para mim. Como Lucas, estou apenas ajudando Zaca. Não tenho motivos para brigar com ele, estamos de bem e somos amigos. Se você não está pronto para deixar o seu ciúme de lado, pode ir para casa.

Natan ficou em silêncio me encarando, certamente cogitando se valia a pena se levantar da cadeira e sumir pela porta do auditório. A esse ponto, todo o elenco e a produção da peça estavam com os olhares fixos em nós.

— Eu escolhi você. — murmurei, só para ele — Desde o começo.

Isso pareceu, finalmente, fazer com que ele voltasse ao normal. Natan exalou e se ajeitou na cadeira, murmurando um "tá, tudo bem" de má vontade. Em seguida, ele se inclinou para depositar um beijo demorado em meus lábios, e eu pude sentir os olhares sob nós como se fossem uma queimadura de sol.

Mário Ney começou a gargalhar de cima do palco, distraindo-nos de nossa reconciliação. E aquele tinha sido o fim da linha para a minha paciência com ele.

Pedi licença a Natan um instante e subi até o camarim para onde eu sabia que Mário tinha fugido.

Onde Há FumaçaOnde histórias criam vida. Descubra agora