bônus ⅲ | ou ❝sem corpo, sem crime❞

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— Nicholas?

A voz infantil de Sarah me despertou à força de um devaneio. Ela estava falando sobre a festa do final de semana, animada para se divertir um pouco agora que as provas tinham acabado. Sarah gostava de estar com pessoas, conversar com elas acima da música alta das festas na casa do Carlinhos.

Eu nunca tinha sido assim, até conhecê-la.

Era uma menina bonita. Tinha cabelos escuros, quase pretos, e olhos amendoados. Era do tipo que atraía as pessoas para perto, e eu me surpreendi quando começamos a namorar, porque eu não era imune a esse efeito. Mesmo com tudo que eu tinha passado, eu ainda ansiava por uma conexão. Por um relacionamento.

— Você está sonhando acordado de novo. — insistiu ela, divertindo-se com seu sorvete de morango. Estávamos relaxando na praça central de Viveiro, e eu tinha levado o violão. Queria mostrar a ela uma música que eu tinha feito. A primeira música nem um pouco depressiva que eu tinha escrito em meses.

— Eu me perco no seu rosto, é bem verdade.

— Pare de ser um galanteador. — suas bochechas coraram por trás das sardas — Você vai me matar de vergonha.

Eu sorri para ela, mas sua expressão se endureceu, encarando um ponto às minhas costas. Me virei para encarar um homem de trinta e poucos anos, saltando de uma caminhonete prateada. Ele usava óculos modelo aviador espelhado e uma camisa de botões, e carregava consigo uma pasta debaixo do braço.

— Nicholas Jordan?

— Quem quer saber? — a voz infantil retirava da frase qualquer grosseria que ela pretendia inferir, mas eu sabia que ela estava me protegendo. Depois de tudo que passamos com o incêndio, estávamos de saco cheio de sermos procurados por repórteres sedentes pela próxima matéria de casos de superação. Os jornais da cidade não se cansavam delas, mas nós sim.

— Sou eu. — lancei um olhar tranquilizador à Sarah — O senhor é...?

— Valter Abreu, investigador privado. — ele tirou os óculos do rosto e esfregou suas credenciais na minha cara. Sarah não pareceu gostar nem um pouco daquilo, mesmo sem saber o que viria a seguir: — Vim falar com você sobre Valéria Corrêa.

Eu saltei no meu próprio eixo. Não esperava ouvir o nome dela em uma tarde como aquela, porque não me lembrava da última vez que tinha falado sobre a garota que eu perdi. Dolores, se recusava a falar sobre ela enquanto eu estivesse com Sarah, e João, que ainda estava se recuperando de seu estresse pós-traumático, se recusava a falar sobre qualquer coisa relacionada ao incêndio.

— A ex morta? — Sarah deixou escapar, com as sobrancelhas erguidas. Tranquei o maxilar. Ainda tinha dificuldade ao pensar em Valéria como uma pessoa sem vida, mesmo não tivesse mais esperanças

— Desaparecida. — corrigiu o detetive com polidez.

— Eu já dei o meu depoimento para a polícia. — falei, na defensiva.

— Não sou da polícia, Nicholas. Sou detetive particular. Estou juntando as informações necessárias para iniciar o processo de declaração da menina como presumidamente falecida.

— Eu não entendo por que isso é necessário. — interrompeu Sarah, seu lábio inferior tremendo um pouco — Valéria desapareceu no incêndio e ninguém sabe dela há meses.

— São só umas simples perguntas, senhorita. — explicou ele, e dirigiu-se a mim — Tenho seu consentimento, Sr. Jordan?

Assenti, me sentindo encurralado. O detetive Valter, então, puxou um pedaço de papel de dentro de uma pasta, e me explicou que eu deveria assiná-lo para dizer que, de livre e espontânea vontade, eu escolhi cooperar com o caso. Todas as páginas estavam rubricadas por meus pais, imagino, por eu ser menor de idade e não poder assumir esse tipo de compromisso.

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