10.2 | ou ❝é isso que você ganha❞

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Decidi voltar para casa caminhando. Eu precisava clarear as minhas ideias antes de chegar em casa. De disruptiva, já bastava a minha aparência. Eu não precisava de nenhum outro motivo para que o pessoal de casa achasse que tinha algo errado comigo.

Quando cheguei em casa, decidi entrar pela porta dos fundos. Era domingo, e a família devia estar toda na sala assistindo a corridas. Contornei o sobrado, descalça para não sujar o chão, mas quando me aproximei da porta que dava para a cozinha, pude ouvir Zaca discutindo com alguém.

— Você deve achar que eu sou idiota. — gritou ele, e eu quase podia ver o nervo em sua têmpora tremendo, porque sempre ficava assim quando ele estava estressado — Eu acabei de ler mais de cem mensagens de outro cara no celular da minha namorada.

Me interessei imediatamente. Nunca fui com a cara da chata da Andressa, e o Zacarias era discreto sobre o relacionamento. Colar o ouvido na porta e espionar era a minha melhor chance para escutar a briga e ter um motivo real para odiar a fresca.

— Você devia confiar em mim! — Andressa retrucou.

— E desconfiar do que eu estou vendo? Eu vi vocês dois juntos!

— Você está sendo ridículo. — argumentou ela, manipuladora — Minha vida tem sido só sobre você.

— Mário Ney tem uma opinião diferente.

Mário Ney?

O mesmo Mário Ney que me serviu o porre do século? O babaca no time de futebol que fazia questão de zoar Lucas sempre que o via comigo? O que ele e a nerd da Andressa poderiam ter em comum?

— Mário é meu amigo.

— Não é o que parece. — falou Zaca sarcasticamente.

— Nós crescemos juntos, a família dele é amiga da minha família!

— E isso totalmente justifica você passar muito mais tempo com ele do que comigo, que sou seu namorado.

Foi nessa hora que eu decidi me levantar.

Eu não ia ficar ali, sentada, enquanto meu melhor amigo ficava se humilhando por causa de uma garota ridícula como Andressa Dante, sem fazer nada a respeito.

— Isso tudo é por ciúmes? — ouvi ela perguntar, num tom de voz superior que me fez colocar a mão na maçaneta automaticamente. Eu precisava ouvir a resposta dele antes de me intrometer.

— Não. É autopreservação.

Eu abri a porta de supetão. Os dois pularam meio metro do chão.

— Val. — falou Zaca, embaraçado — Não sabia que você estava aqui.

— Acabei de chegar. — resmunguei, olhando feio para Andressa.

— Já estou de saída. — Andressa passou a mão na bolsa e já estava a caminho da mesma porta pela qual eu tinha acabado de entrar. — Conversamos melhor outra hora. — para Zaca — Tchau, Valéria. — para mim.

Eu estava no auge da minha raiva, doida para descontá-la em alguém.

E Andressa merecia.

Ignorei os chamados de Zaca, e saí correndo para alcançá-la. Andressa já estava entrando em seu carro reluzente quando a chamei, e ela levantou a cabeça para olhar na minha direção.

Andressa Dante era a versão baixinha e não tão bonita de Lorena. Seus cabelos eram igualmente loiros e a pele queimada de sol, com olhos castanhos amendoados. Só que Andressa tinha uma expressão de superioridade no rosto.

— Olá. — ela deu um sorriso falso — Lola esteve te procurando, você sumiu depois da festa. Ela me disse que você tomou um porre épico.

Eu a ignorei.

— Só vou dizer isso uma vez. Se você magoar Zacarias, eu vou te mostrar o que nós fazemos com babacas lá de onde eu venho.

O rosto dela caiu, e ela murmurou um "perdão?". Sonsa.

— Você tem sorte de um cara como ele gostar de alguém como você. — disparei, sem medir as palavras. Não medimos as palavras com babacas lá de onde eu venho. — Mas você não me engana, nem por um segundo. Eu ainda não sei o que está errado com você, mas você não quer pagar para ver se eu descobrir.

Andressa recuperou a pose, e estendeu um dedo diante do meu rosto.

— Também só vou dizer isso uma vez. Não pense que só porque minha irmãzinha descabeçada enxerga algum potencial em você, eu não vá fazer da sua vida um inferno dentro daquela escola. As regras são diferentes do que você está acostumada aqui no litoral, caipira.

— É o melhor que você pode fazer? — debochei — Caipira? Sério?

— Cuida da sua vida, que do meu relacionamento cuido eu. Cansei dessa conversa. — finalizou ela, abrindo novamente a porta do carro. Assim que ela entrou e se preparou para bater a porta, eu segurei e a olhei fixamente nos olhos.

— Você me ouviu. Não ouse magoar o Zacarias. — disse eu, bem baixinho.

— Ele é meu namorado. Você não é nada dele. — Andressa falava enquanto ajeitava o retrovisor do carro para olhar para si mesma — Desencana, aberração.

Eu estava espumando quando voltei para casa. Quando entrei na cozinha, Zaca praticamente se desprendeu do teto e caiu na minha frente.

— Você é maluca! — disse ele, entre o riso e a preocupação — Andressa poderia acabar com você estalando os dedos!

— Essa baixinha? Duvido.

— Ela já foi campeã de judô. — argumentou ele. Nesse exato instante, ouvimos um grito gutural no andar de cima, que deveria ser José Renato tentando fazer levantamento de peso com a cama.

De novo.

— Eu moro com o Zé. — contrapus, erguendo os olhos para o teto acima de nós — Ela não me assusta.

— Ah, chegou uma carta para você. — ele mudou de assunto.

— Sério? É do meu pai? — perguntei sem preocupações.

— Não li. Está no seu quarto.

Pisquei para ele em agradecimento, e andei pela casa até o meu quarto, me deparando com Marcos esparramado no sofá da sala com um pacote de salgadinhos e algumas latas de cerveja vazias. Revirei os olhos e prossegui.

Encontrei a carta em cima da minha cama naquela manhã de domingo, e chorei até a manhã de segunda-feira.

E eu nem a havia aberto ainda.

O fluxo incontrolável de choro começou na hora que eu vi, no lugar do destinatário, as seguintes palavras:

"Ao meu primeiro amor,

Valéria da Nóbrega Corrêa."

E abaixo, a seguinte nota no rodapé do envelope:

"Sinto muito por ter de esquecê-la."

Onde Há FumaçaOnde histórias criam vida. Descubra agora