No Fundo.

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Enquanto eu terminava meu cigarro João conversava com o gerente do hotel. Aparentemente eles se conheciam,algumas vezes o homem mais velho sorria para meu irmão com bastante entusiasmo,e em um dado momento os dois olharam disfarçadamente para mim,ou pelo menos tentaram usar o recurso do disfarce.

Eu estava concentrado demais em mim mesmo para ligar. Havia um toco fumegante entre meus dedos,ideias conspiradoras entre meus pensamentos,e um vento quente transpassava meus cabelos,havia um sussurro distante em meus ouvidos,apenas a luz artificial dos postes me fazia visível naquele momento,e eu queria desesperadamente estar em outro lugar.

Uma parte de mim desejava estar vivendo em outra dimensão e,com outras pessoas,se possível sendo um 'eu' diferente do que sou.

Imagine uma ponte,forte,firme,ela se sustenta por anos,cai chuva e vem o sol,passam-se décadas,testemunham-se revoluções,se passam tragédias,acontecem romances; Tudo se passa enquanto a ponte ainda esta firme,se sustentando em suas vigas,se fortificando na confiança de sua função.

E então,sem nenhum aviso prévio,uma rachadura quase imperceptível se instala,não é incômodo,até que ela cresça,até que venham outras.

Até que a ponte desmorone.

E você se encontre no chão,envolto em corpos de vítimas que você massacrou,mergulhado em entulhos,e finalmente destruído.

Eu sou a ponte. Apenas com algumas rachaduras. E pronto para desmoronar,e esmagar os que estão á minha volta.

Porque é isso o que acontece quando você decide desmoronar.

Não é só você que vem abaixo. Eu levo todo mundo junto.

Efeito dominó.

A fumaça sai rasgando a minha garganta.

- Acho que já podemos entrar. - João diz com um sorriso.

Apaguei meu cigarro. Respirei fundo.

E lá fomos nós.

Estávamos no salão central do hotel,o chão era impecável,de um brilho incomparável,eu ainda vestia as roupas sociais que Wall havia me emprestado,e João também estava formal,de modo que nos misturamos aos senhores e senhoras elegantes que preenchiam o lugar.

Eram de uma fineza imperial,todos já em uma certa idade avançada,carregavam um brilho especial,reluziam experiencia por todo o salão,suas conversas eram polidas,suas histórias eram dignas de serem ouvidas por horas,e a cada vez que se moviam pareciam munidos de uma graça notável.

Não nos perceberam de imediato,um ou outro estranhava o fato de sermos tão jovens,e dois ou mais nos olhavam com olhar curioso. Não havia música,somente o burburinho de conversas, e de vez em quando uma risada se sobressaía.

Eu e João nos movíamos devagar,procurávamos uma mesa,estávamos no centro do salão quando as luzes se apagaram,e apenas o palco se iluminou,João parou no mesmo instante e sorriu satisfeito.

- Ela vai se apresentar ! - ele disse mais para ele mesmo do que para mim.

Eu continuei olhando para o palco,e lá estava,seu vestido azul,seus olhos azuis,seus lábios da cor da pele,os cabelos valiam mais que ouro e reluziam como tal.

- Boa noite. - sua voz estava arrastada,com um tom de rebeldia - Eu estou muito feliz de estar aqui hoje,com todos vocês me fazendo companhia.

Ela foi interrompida pelas palmas dos idosos.

- Obrigada. - ela sorriu,mas não estava feliz - Eu sei que estão ansiosos para a música,mas eu queria ler uma coisa primeiro.

Dessa vez não houveram palmas. As pessoas só olhavam para ela.

Ela respirou,se abaixou,pegou o copo que estava ao lado do microfone,e virou o líquido escuro todo de uma vez,ela se levantou e sorriu mais uma vez.

Ninguém pareceu se incomodar.

- Espero que gostem.

" O que dizer do coração,que parece uma fumaça branca que sai de vez em quando das narinas do destino. O que dizer do mar,que você vê em meus olhos."

Meu corpo esfriou,minhas mãos suaram,e de repente vi que ela olhava fixamente para mim.

" O que dizer do céu que chove em você,refresca minha alma,e se mistura como se fosse um. O que dizer das palavras,que te fizeram mestre,e me fizeram bem. O que dizer. O que dizer daquele que se foi,que nos roubou uma parte do que costumávamos ser. O que dizer de mim,que nem mesmo em um milhão de anos vou ser o que o seu passado foi para você. O que dizer de nós,que nem mesmo chegaremos a ser.
O que dizer.
Não diga nada. Não diga nada. Não fale mentiras. Não invente histórias. Porque você é bom nisso "

Ela apontou para mim,e involuntariamente algumas pessoas viraram a cabeça.

" Mas eu,não sou. "

Ela sorriu. Imagino que as pessoas a aplaudiram,mas eu não escutei. Continuava ouvindo aquela última frase.

" Não invente histórias. Porque você é bom nisso. Mas eu,não sou."

Eu não havia inventado nada. Não tinha mentido nem uma só vez. Se havia alguém que estava totalmente fora de controle era ela. Ao mesmo tempo em que estava serena,estava gritando aos quatros ventos. Ela era a louca que bebia até mais tarde. Era ela que quebrava celulares. Ela que me tirava do sério.

E então de repente,o problema era eu.

Aquela situação me deixava cada vez mais irritado.

Como ela tinha a ousadia de escrever aquilo pra mim ?

Eu estava me convencendo de que ela era maluca. E que estava me deixando igualmente insano.

Mas então olhei para ela,compenetrada,seus dedos eram ágeis por todo o instrumento,seu corpo balançava levemente. E todos à sua volta se calavam para ouvir o que suas mãos tinham a dizer. O que seu corpo estava sentindo. O quanto sua alma estava sofrendo.

Tudo através do som.

Era incrível como ela conseguia transpassar tudo o que sentia através do violoncelo. Talvez fosse lá que ela guardava o resto de sanidade e humanidade que a restara.

A música parou.

Houveram aplausos. E arrisco dizer que duraram uns bons 5 minutos.

Ela sorria. Mas no fundo no fundo,parecia triste demais.




Demorei,mas estou aqui. As coisas têm saído do controle. Mas o mundo não acabou por coisas maiores certo ? Não é hoje que ele vai desabar.

Beijo na testa de vocês.

Se houverem erros por favor me deixem saber,os capítulos vem sido postados pelo celular.


Cartas de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora