VI - .... o olho na enxada...

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VI -... o olho da enxada...

As mãos da mulher estavam crispadas quase na boca do bueiro como se mesmo depois da morte continuasse pedindo piedade e por um socorro que não veio. Entre os braços dava para ver o restante dos cabelos curtos cheio de terra igual àquela do terreiro e os ombros com muito sangue misturado à sujeira parecendo um barro esquisito feito de sangue coagulado. A calota craniana havia sido ajeitada toscamente no alto da cabeça. A cicatriz do corte aparecia de lado a lado. Um odor desagradável espargia no ar. A fossa tinha seu cheiro característico, mas era misturado com os odores da morte. O caminhão de resgate dos Bombeiros chegou estacionando ao lado do muro. O condutor do veículo, vendo o movimento suspeito, não precisou nem perguntar onde tinha de parar. Muitos acenos de populares ansiosos para ajudar passaram as informações necessária para localizar o ponto de encontro do cadáver. Um sargento jovem e enérgico examinou o buraco onde se encontrava a morta. Passou muitas ordens para o grupamento de auxiliares. Todos saíram agitados pegando instrumentos de trabalho para o resgate.

O braço mecânico do caminhão foi estendido por cima do muro, ficando com uma roldana provida de corda bem no rumo do bueiro. Um soldado combatente escalado para a missão muniu-se de muitos equipamentos individuais e fez sinal de positivo para o seu comandante. Ele olhou a forma como o cadáver se encontrava no infausto repouso e fez os cálculos da empreitada. Estava logo abaixo da borda, há mais ou menos um metro em relação ao nível da superfície.

O soldado equipado com o cinto, tipo cadeira de alpinistas passou a corda do suporte às suas costas e foi puxado para o alto, ficando a meio metro da superfície. Como se fosse um trapezista, quando tem posição, virou de cabeça para baixo prendendo os pés na corda que o sustentava. Deste jeito desceu lentamente. Ao atingir a posição de serviço, deu sinal para travar a corda. Amarrou o cadáver pelos braços e mandou puxar. A mesma corda que o sustentava, funcionou como guindaste. Acaso arrebentasse, cairia de cabeça sobre a vítima. Com certeza teria ferimentos múltiplos. Entretanto, tinha plena confiança no equipamento.

O motor da viatura de resgate fez uma ligeira mudança no funcionamento, quando o operador fez enrolar a corda lentamente. O homem do salvamento foi emergindo da terra. Abaixo dele, a corda esticou puxando os braços de dona Maricota. Quando o soldado voltou à superfície, desprendeu os pés da corda ficando de pé se desprendendo do guindaste. O caminhão continuou puxando. Apareceram na superfície os braços, muito esfolados. Os flashes das máquinas dos repórteres registraram o flagrante.

Os holofotes das TVs iluminaram com maior nitidez os horrores do holocausto da vítima. O público em volta suspirava em ais e hóos... O barulho do motor do caminhão fez uma leve mudança no esforço e o sargento mandou parar e foi verificar. Alguma coisa prendia o corpo, impedindo-o ser içado. Ao puxar e folgar o esforço no cadáver, espichou e dobrou as pernas funcionando como trave esbirrando na beira do bueiro, teimando em não deixar o repouso fúnebre. Fazendo acenos, o sargento comandava à distância, outro integrante da equipe para fazer movimentos curtos e calmos, descendo e subindo o guindaste na tentativa de destravar alguma coisa, sem ferir a vitima ainda mais. A perna se desprendeu e a cabeça da morta apareceu. Muitos populares levam a mão à boca num gesto de espanto e horror. A testa da mulher estava dilacerada com o buraco do olho da enxada. Como uma peça de porcelana, parecia quebrada imensamente. Os olhos dela estavam esbugalhados e um deles foi expulso da órbita, estando preso nos nervos pelo lado de fora.

Geraldinho batia as fotografias de praxe no caso e ajustou o foco da objetiva para o rosto da mulher. Trouxe a imagem para bem próximo de si observando os sinais visíveis no rosto dela onde foi cravado a enxada, quebrando o osso da testa e afundando até a lâmina encostar, começando a cortar também. Não existia dúvida da vítima ter sido atingida deitada de costas com ataque frontal na testa sem a menor condição de defesa. Devia dormir pesado, principalmente pelo efeito da Jurubeba. Apesar da desgraceira do ferimento, não deve ter sentido nada, morreu dormindo. O perito bateu outras chapas e ficou vagueando com aquela cena macabra voltando nos fatos, revendo as fotos, tentando imaginar como ocorreu o crime, qual o móvel dele e quem teria sido morto primeiro.

O cadáver de Maricta foi estendido no chão. Com este movimento, a parte superior da cabeça se soltou. O crânio deixou à mostra o interior cheio de barro. Com o arrastamento pelo terreiro, foi perdendo a massa cefálica e agora estava cheio de terras. Duas mulheres, parecendo mãe e filha próximas, começaram a se afastar da cena. A mais velha delas fraquejou e caiu de joelhos, desmaiando. O sargento do Corpo de Bombeiros a socorreu, levando-lhe uma maleta de primeiros socorros. Mediu a pressão arterial, escutou-lhe o coração, movimentou-lhe os braços. Ela continuava inerte. Tomou um frasco com alguns sais e fez-lhe inalação. A mulher fez poucos movimentos, mas comemorados como vitoria. Pelo visto, foi apenas um desmaio em virtude da emoção com aquela visão satânica.

O corpo da morta estava totalmente nu e, pelas marcas nas costas, tinha-se certeza dela ter sido arrastado desde o quarto onde foi assassinada até o buraco em que foi enfiada. Reinaldo estava circulando entre os populares à cata d'alguma informação e conseguiu descobrir uma pessoa que vez por outra ajustava Júlio e Marcola para serviços braçais. O homem foi trazido para falar com o delegado Travejane. Pelos trejeitos, a fala arrastada e mansa, notava-se sem muita dificuldade tratar-se dum homossexual enrustido. Mandou anotar seu nome e endereço para diligências posteriores. Instruiu o policial conversar com ele principalmente para saber qual relacionamento mantinha com Marcola ou com Julio.



macumba - o terreiro da morteWhere stories live. Discover now