Capítulo XV-...se desgruda de seu pesado sono...

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XV - ...Se desgruda de seu pesado sono...

Depois destas conversas o delegado resolveu voltar. Subiu a ladeira e quando o fazia colocou a mão em uma fenda do barranco para se firmar na subida. Sentiu algo macio e pequeno como se fosse um cigarro. Levantou o pescoço e examinou, pensando inicialmente tratar-se d'algum mandarová, mas para sua surpresa era um bem fornido cigarrito de maconha esquecido na rachadura, pegou desfazendo-o e mostrou o conteúdo ao ancião perguntando-lhe se conhecia o fumo do recheio. Após cheirar e sentir o objeto, respondeu negativamente. Certamente fora esquecido pela turma da comunicação com os mortos. O papel enrolando a cannabis era igual à outra guimba encontrada do lado da cama do extinto enteado de Grampola, Júlio. Apreendeu o cigarrito e o levou para exames mais detalhados na delegacia.

Completada a subida saíram no platô onde estava a camioneta. O delegado Travejane parou diversas vezes a pretexto de examinar um ou outro detalhe, entretanto Joca percebeu daquelas paradas serem estratégicas. O chefe queria disfarçar o arfar da respiração no cansaço devido à obesidade. Finalmente romperam o tope. Embarcam no veículo e foi dado partida no possante motor de 172 cavalos. Quando a máquina se movimentou, sentiram o roncado do trem de força parecendo um trator engrenado para puxar peso, tal o batidão do conjunto. O ruído de antes, agora era diferente: estremecia o interior da cabine como se o carro todo tremesse na batida do motor. Avançava bem devagar e com firmeza não escorregando, apenas mudava de direção a cada escorregada, mas quando uma roda não encontrava posição suficiente para descarregar o torque, era aliviada da tração as outras três se faziam presentes. Um show de tecnologia off road.

Como não era estrada de barro, não fazia sujeira, apenas, vez por outra, alguma fumaça branca levantava nalgum dos pneus unhando a rocha lisa. Assim, subiram até atingir uma parte de cascalho solto. Joca, por um instante, aliviou o pé do acelerador. Como o veículo vinha muito devagar, parou. Quando ele afundou o pé novamente, a camioneta rodou com as quatro rodas em falso, escorregando para uma vala provocada pelas águas da chuva. Caiu com as duas rodas, do lado do motorista, ficando inclinada quase quarenta e cinco graus. Um susto tremendo balançou todos eles. Apenas o delegado, no banco do passageiro da frente estava com cinco de segurança, não caiu por cima dos demais, ficando pendurado.

Os três passageiros do banco de trás se abraçam sem querer e custaram a refazer suas posições. Com a queda, os eixos do veículo aninharam ao máximo, ficando as rodas inoperantes. Uma fumaça de superaquecimento saia do capuz e o motor foi desligado por um dispositivo de segurança. Com alguma dificuldade saíram da camioneta pela porta do lado de cima. Foi uma barbeiragem e tanto, ninguém tinha dúvida. O ancião, morador da fazenda querisa chamar seu filho com o trator para rebocar, mas Travejane olhou a frente do veículo e observou um guincho com cabo de aço e começou a desenrolar o fio, levando-o até o alto da subida. Quando abriram a estrada o tronco duma árvore derrubada permaneceu no local e foi necessário fazer um desvio. Avaliaram o peso do tronco e da camioneta e decidiram ser suficiente para suportar o tranco do repuxo.

Uma pequena trave no painel foi liberada e acionado um botão preto embaixo do encaixe. O cabo começou a esticar, e a viatura a se locomover. O cabo foi puxando e o veículo acelerando para sair do encravo. Com a mudança de prumo do veículo, aconteceu um pique na tensão do cabo, dando um solavanco. O peso da camioneta era quase compatível com a tora abandonada. A posição de aclive favoreceu a inércia do contrapeso e a tora desgrudou de sua morada, derreando de seu pesado sono e aos saltos foi para cima deles. A camioneta estava funcionando na tentativa de subir. Joca foi muito rápido: bateu a mão no tal botão do guindaste cuidando da alavanca de manobrar o câmbio.

Engrenou uma ré imediatamente e como as rodas tinham encontrado alguma tração o veículo saiu patinando, empurrados por todos os santos passou liso sobre o lugar onde estava aninhada. A tora veio rolando aos saltos e atingiria a camioneta inexoravelmente em questão de segundos, mas num lance de sorte do acaso se encaixou bem no local onde a viatura estava. O barulho do tronco ao bater nas saliências do terreno dava para calcular-lhe o peso e imaginar que se atingisse o carro, o teria esmagado. Ao se ver livre do primeiro perigo, Joca meteu o pé no freio querendo parar a máquina, mas tinha atingido a parte de pedra preta, molhada e lodacenta e não obedecia ao comando. Se persistisse naquela trajetória, seria tragada pelo rebojo consumidor de coisas. Tentou engrenar uma primeira marcha, o câmbio aceitou. Imediatamente acionou a reduzida.

As quatro rodas giram furiosamente puxando para frente, mas nada conseguiam de positivo. Patinando sobre piso molhado, não firmam o suficiente. O atrito aquecia os pneus fazendo levantar fumaça branca com cheiro característico. O carro continuava descendo sem obedecer a tração de subir, até o cabo de aço se esticar no fim do lanço e conteve o queda. Aquele fio fino, que pouco se dava por ele, era forte pra chuchu. Com a retenção da camioneta esticando o cabo a tora nem se mexeu no tranco. O peso fê-la repousar em berço eterno. Para retirá-la deste novo sono, somente com trator de esteiras, e dos grandes. Joca acionou o botão preto de recolher o cabo. A tensão do cabo aumentou e ajudado pela tração positiva começou a subir lentamente. Joca parou e puxou o freio de estacionamento, desligando o motor. Desceu assustado e amarelo como açafrão. Tremia das pernas balançarem a roupa.

Levantou o capuz e ver qual a razão da fumaça, havia pouca água no radiador. Um dos colegas buscou lá no sumidouro de coisas um balde da água completando a cota do radiador. Novamente em ponto de marcha, ninguém queria se arriscar a entrar no carro. Travejane sentou-se no banco do motorista e deu partida. Pisou duas/três vezes no acelerador sentindo o tropel da cavalaria afiada como um solo duma orquestra. Engrenou a primeira marcha reduzida, acionou o guindaste e deu partida fazendo patinar os quatro pneus. O veículo foi fazendo manobra como uma cobra passando em areia quente do sol, cortando volta da vala onde dormia o tronco traiçoeiro, acenou a Joca para desengatar o cabo e equilibrou a força do conjunto funcionando, subindo milímetros na força da embreagem. Venceu o cume íngreme e parou na chapada rechã. Todos entraram e foram para a segurança do pátio da fazenda. Talvez os espíritos amigos de Grampola e sua turma estivessem querendo ajudá-lo, não permitindo a descoberta da autoria do crime, amedrontando os importunadores de despachos aos santos de sua seita.



macumba - o terreiro da morteWhere stories live. Discover now