Capítulo XVI ...exu Tranca Rua chega...

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XVI - ...Exu Tranca Rua chega...

De volta à delegacia, o grupo de investigadores se reuniu para discutir sobre o progresso da investigação. A visita na fazenda Gameleira serviu para reforçar a convicção de que realmente havia um relacionamento libidinoso entre os quatro suspeitos. Aqueles serviços feitos na roça eram um disfarce perfeito para as orgias que Grampola gostava. Em relação ao trabalho de perfurar poços artesianos, realmente eles sabiam fazê-lo. A venturosa visita na fazenda Gameleira não acrescentou indícios decisivos à investigação. Os fatos conhecidos sobre a autoria do crime continuavam os mesmos, exceto que cada vez mais se firmava um pacto de conveniências entre os quatros suspeitos. Reinaldo conseguiu levantar uns dados interessantes sobre trabalhos espirituais feitos em regiões de cerrado fechado, com entidades espirituais da pesada. Soube também que pelo menos Grampola e Carmelita continuavam fazendo os trabalhos de macumba com um grupo novo. Agora partia para a magia negra com ações ligada às seitas de vodu. Na discussão dos novos passos da investigação e os indícios a serem investigados, falaram com o delegado sobre suas desconfianças destes trabalhos de mato e pediram autorização para ir a uma destas sessões estudar melhor o ambiente. Talvez lá encontrassem uma pista interessante.

Discutiram sobre o assunto e concordaram: ele e Joca se infiltrariam cautelosamente no tal trabalho pesado onde as entidades comparecentes eram exus e outros do gênero. Deviam tomar cuidado para não se expor contra o culto deles e esbarrar na lei do livre exercício da fé. Um dos policiais da Delegacia, João Mocó, conhecia a prática de magia negra pela qual Grampola se enveredava. Aconselharam com ele sobre as diversas possibilidades de abordagem aos freqüentadores do centro espírita dele. Depois duma hora de consulta, foram alertados para os perigos existentes nestes terreiros de macumba pesada. Não era praticante deste tipo de trabalho d'algumas facções da umbanda, entretanto advertiu aos colegas policiais para os perigos existentes naquela nova etapa da investigação. O trabalho ao qual eles desejavam ir aconteceria numa sexta-feira, na Matinha da Macumba, nas proximidades da Vila Redenção. A função começaria por volta de vinte e uma horas se estendendo até às duas da madrugada. O ponto alto dos trabalhos seria à meia-noite. Reinaldo apresentaria um problema fictício de separação de casal, pedindo ajuda. Joca estaria junto para dar suporte amigável ao companheiro. Chegou finalmente a quarta-feira da função espiritual do mato. Os dois policiais estavam excitados com o serviço. Guardaram os trabucos de serviço no porta-luvas da camioneta, a Ordem de Missão Policial e um gravador. Reinaldo levou escondido no bolso um ponto de microfone na esperança de não sê-lo percebido pela "entidade".

Grampola e Carmelita os conheciam sabendo-os quem era, estranharam vê-los no terreiro. Foi falar com o Cambrone sobre os dois novos visitantes, mas ele explicou que o mais gordo foi na casa da Mãe Gertrudes no meio da semana e fez uma consulta sobre coisas de amor. Reinaldo fora abandonado pela namorada e sofria duma paixão imensa. Ambos riram baixinho sobre o problema do policial machão. Não havia nada demais, apenas eram dois novos fiéis. Reinaldo procurou conversar com alguns dos presentes enquanto não começava a função. Chegou a falar com Grampola e sua secretária, nada falando do crime. Às vinte e duas horas estava formado um círculo relativamente grande com quinze pessoas de mãos dadas, todas vestidas de branco e cantando orações de baixar espíritos. Os médiuns aguçavam a voz na cantoria firmando os pontos de abertura dos trabalhos, chamando as entidades para a função. Um atabaque emitia um som cavo, acompanhado por dois tamborins e um tambor.

Havia até um pandeiro de poucos chocalhos. No segundo ponto, o cambrone interrompeu a cantoria, pedindo aos presentes para firmar o pensamento no Altíssimo, não cruzassem os braços ou qualquer parte dos membros, evitando quebrar a corrente. Recomeçou a cantoria, mas foi interrompida novamente, desta feita para pedir que guardassem qualquer ferramenta de aço guardada com os presentes, atrapalhava a concentração dos médiuns, não permitindo a formação duma corrente adequada. Joca saiu de fininho sem ninguém perceber, estava na parte exterior da platéia e foi até a camioneta guardar a pistola ponto quarenta. A cantoria recomeçou. Ele voltou ao grupo e se escorou num pé de Araticum. Olhou curioso para o movimento dos médiuns. Num dado momento, uma das mulheres começou a rodopiar e a saia dela ia lá em cima mostrando uma calçona branca por baixo. A intensidade do movimento chegava a sibilar no rodopio de seu bailado, entortando o facho dos lumes das velas pretas e vermelhas espalhadas na sobra das árvores.

O Exu Tranca-Rua chegou dando esturros como se fosse um touro brabo, pronunciando coisas incompreensíveis. Fez gestos medonhos e largos. A música mudou imediatamente. Um ponto, falando de suas aventuras com arco e flecha foi tirado pelo mestre de cerimônia. O cambrone se apressou em trazer um charuto aceso entregando-o à entidade. O pito foi levado à boca e puxado uma tragada bem funda, atiçando a brasa da ponta do palheiro de ficar viva igual a uma lanterna. A entidade parecia faminta daquele mimo, demorou a expelir a fumaça. Acenou para o cicerone do além, que atarefado atendia outro guia recém incorporado, desta feita o Exu Sete Flechas, para satisfazer-lhe o desejo entregou uma garrafa de pinga Chora Rita. A entidade levou-a ao queixo chupando até a última gota.

Um homem comum se bebesse com aquela voracidade teria caído em coma alcoólica em cima da garrafa. O Exu Tranca-Rua sentindo o cheiro da cachaça foi na direção de onde exalava o odor, mas chegou tarde. Não mais existia uma gota. O cambrone apressado trouxe outra garrafa da aguardente para o Exu, ele parecia irritado e queria mais alguma coisa para fazer frente à desfeita dada pelo companheiro Sete Flechas. Uma auxiliar do terreiro se aproximou entregando uma galinha preta viva. A ave se debatia apavorada com a bagunça e esturros das feras. Certamente seu instinto animal a prevenia de seus predadores naturais. Esperneava tentando fugir. Tranca-Rua pegou-a pelos pés, ela cacarejava protestos num canto fúnebre em altos brados protestando pelo desfecho de sua sorte, quando a mão direita de seu captor segurou-lhe o pescoço com violência trazendo-a na boca.

Deu-lhe uma mordida, arrancando um tufo considerável de penas. Virou a cara para o lado, mantendo os olhos sempre fechados e expressão indefinida. Soprou longe aquele punhado de penas. Voltou a boca ao local depenado e travou os dentes na jugular da galinha devorando-lhe o sangue. A infeliz estertoru, mas foi um protesto de Napoleão diante do Duque de Wellington em Waterloo, não adiantou nada. Seus movimentos contidos pelas mãos do exu foram se tornando menores até cessarem totalmente. Tranca-Rua jogou a galinha para o lado, o Cambrone a recolheu cerimoniosamente. Outro exu incorporava numa mulher, exigiu seu ponto de entrada e os puxadores de cantoria fizeram rufar os atabaques. O canto falava de guerras e caçadas nas selvas africanas identificando o herói como Exu Araçá, uma entidade do brejo ralo das savanas. Ele chegou sem muito alarde, não tinha os movimentos espalhafatosos dos demais. Iniciava o balado e parava no meio da volta, parecendo uma roda com defeito num arco.

Pediu uma cuia de coité, desenhada com seu ponto, duas figuras de cinco - salomão cruzado, pintado em vermelho e preto. A cuia estava cheia de farofa de bode e o cheiro exalava longe, mostrando a concentração de pimenta cumari e malagueta. A entidade encheu a mão comendo sem mastigar como se degustasse algo muito delicioso. Pegou mãos cheias oferecendo aos presentes. Joca estava próximo e só o cheiro da iguaria fez-lhe correr lágrimas. O Exu Araçá não perdeu o gancho e insistiu com ele perguntando se queria um pouquinho. Joca não conhecia os costumes daqueles seres estranhos, ficou sem saber se aceitava ou não. Caso aceitasse, teria de se preparar para ir a um consultório médico no dia seguinte, tal os ferimentos da boca. Se rejeitasse corria o risco de desagradar os feiticeiros e não sabia quais as conseqüências. Olhou aflito para Reinaldo, que não podia socorrê-lo por estar em aperto parecido. Olhou de lado e deu de chofre com o olhar de peixe morto do Cambrone, mas foi quem o salvou acenando-lhe discretamente para não aceitar.


macumba - o terreiro da morteWhere stories live. Discover now