IVX - ... Amarrados em patuás de panos com sete nós, foram...
A diligencia onde aconteceu o trabalho espiritual das águas chegou em um lindo espraiado de águas límpidas. Aquelas cachoeiras vinham aos trambolhos rolando da serra distante, se esfregando pelas gretas apertadas das pedras, filtrando as águas de tal forma que quando chegava ali naquela quantidade imensa de pedras ia se espalhando, formando cristas de água limpa de dar vontade de pular na correnteza e ficar por lá o tempo todo. Havia um cordão de pedras aflorado onde a água saltava em golfadas e ia formar um estuário com profundidade dum metro.
O cascalho no fundo do remansado era branco, parecendo o mais puro seixo de prata, contrastando com o fundo do poço da mesma pedra preta e escorregadia lá da estrada. Até parecia da natureza ter escolhido o lugar ímpar para os homens crentes de Deus proceder à adoração do senhor na certeza das palavras, gestos e sacrifícios chegarem ao criador. O ancião parou a pouco mais de um palmo de uma pedra enorme e cheia de fendas como se estivesse respeitoso ao santuário. Parecia se transformar mistificado pelos acontecimentos recentes, quando do trabalho de macumba.
Os policiais acompanhando-o não se contiveram com a vontade de tomar um banho. Agacharam sobre a correnteza, tocando as mãos em concha na água para matar até mesmo uma sede não latente. Apenas tocar aquela beleza satisfazia a ansiedade. Travejane olhou o velho perguntando como foi o trabalho espiritual. Todos os médiuns estavam de branco e as mulheres usavam um vestidão rodado com calçolas brancas indo até o meio da canela. As roupas de baixo se pareciam com os trajes de banho de sua juventude, usados pelas mocinhas em Ipanema, no Rio de Janeiro.
Começaram cantando umas músicas diferentes e falando sobre a deusa Iemanjá. Os guias foram incorporando e em menos de vinte minutos todas as entidades estavam presentes. Eram dez pessoas, sendo quatro médiuns e os demais assistentes. Pegaram uma cesta de vime grande e com enfeites nas bordas, dela tiravam oferendas para os Deuses das águas. As ofertas foram soltas boiando no remanso onde os médiuns incorporados tinham entrado com a água acima da cintura. As oferendas soltas à mercê do remanso tinham movimento diferente do padrão de coisas rodadas, iam para o centro do poço como se um ímã as puxasse, um rebojo sugava a prenda para o fundo e desapareciam. Por mais que se olhasse não conseguia distinguir com clareza, apesar da água estar transparente. No final do processo, o funil formado no redemoinho de águas emitia um assovio parecendo um macaco avisando o bando do perigo iminente. Alguns lambaris ouriçavam em volta das oblatas, quando algumas emergiam na quebrada do rebojo.
As dádivas iam rodando mais rápido que outras coisas boiando naturalmente e sumiam no começo da outra corredeira. Depois desta queda d'água, o curso embicava em densa vegetação ribeirinha sumindo no meio da mata. O guia espiritual de dona Maricota, mulher de Grampola, era o pai Jacó, um preto velho brincalhão com todo mundo, mas não ficava perto de Carmelita em nenhum momento. Alguma coisa parecia afastar um do outro. Grampola recebeu o pai Tupi, um índio muito arretado, que não ficava três minutos sem mergulhar no poço e nadar com a desenvoltura de um campeão olímpico. Uma entidade mirim incorporou em Júlio e fez a festa como se estivesse em folguedo com outros meninos. Para ele trouxeram balas, refrigerantes e chocolates. Muitos despachos amarrados em patuás de panos com sete nós, foram jogados na correnteza e sumiram rio abaixo. Não sabia o que continha cada um deles, mas devia ser importante, pois quando um dos guias os pegava fazia tanta reverência antes de soltar no riacho, como se estivesse diante de alguma coisa sagrada.
Grampola desincorporou e passou a fazer intermediação entre os guias espirituais e os interessados, traduzindo-lhes as falas. Havia muitas palavras incompreensíveis. Conversando com ele soube que ele era o cambrone, e era igual a cicerone, isto é, interpretava as falas das entidades. Todos os médiuns incorporados beberam marafa, mais de um litro cada um. O ancião falava com muito respeito das coisas da religião do suspeito do crime. Em um determinado momento, emendou: apesar de não acreditar em tudo aquilo não tinha explicações lógicas para os acontecimentos e assim sendo não se julgava no direito de não acreditar. Pensou que pelo menos a mulher estaria bêbada ao final da função, mas quando terminou a sessão, todos foram para o acampamento da obra e mesmo tendo comido e bebido tanta coisa estavam famintos. Fui falar de pertinho com o seu Marcola, ele não tinha bafo nenhum. Era inacreditável. O delegado ainda perguntou se viu durante os trabalhos executados para perfurar os poços alguma intimidade entre Carmelita e os homens do acampamento. Eles eram muito unidos e até achava da moça ser irmã de algum deles. Os policiais examinam o local onde fora feito o tal trabalho das águas, inclusive fizeram muitas fotografias. A cachoeira vinha quebrando lá de cima em um bonito manancial como um véu de noiva espalhado sobre as pedras-ferro. Dado a altura da queda, uma neblina de gotículas subia parecendo garoa sem fim.
Ao final da correnteza, havia um estuário onde a água se espraiava formando poços de água cristalina. Dali sumia no mato. No horário da visita da polícia, o sol estava a pino, via-se o fundo do poço com nitidez onde alguns peixinhos nadavam serelepes. A correnteza entrava por um canto do estuário e formava um fervedor em forma de redemoinho. O ancião explicou: naquele rebojo viu muita coisa esquisita acontecer no dia dos trabalhos. Muitas oferendas foram trazidas pelos médiuns, cantando uns refrões diferentes, andando sobre a pedra molhada sem escorregar e soltavam as ofertas na correnteza. O objeto colocado sobre a água ia com velocidade para o outro barranco e parecia d'alguma força empurrá-lo. Voltava para o meio do rebojo sendo tragado pelas águas. O objeto ia submergindo, mas sumia como encanto. Viu isto se repetir muitas vezes e ficou intrigado, olhava com afinco, prestava atenção, mas num piscar de olhos a oferta sumia. Reinaldo quis imitar a os atos de jogar coisas n'água e apanhou um punhado de flores, amarrando com cipó e nos de macacos fazendo um ramalhete, jogou na água para experimentar o movimento. As flores boiaram e rodaram normalmente, passando pelo rebojo, saindo lá embaixo sem se afundar. O ancião aproveitou para dizer que no dia dos trabalhos todas as ofertas afundavam numa pressa descomunal.
Um momento, quando estava bastante entretido olhando um barquinho atingir o epicentro do rebojo, sentiu um dos médiuns se aproximar e o pegar pelo braço, para dar-lhe um passe. Levou um susto e começou a tremer, até hoje ainda não sabe se tremia de susto ou se realmente aquele que o tocou estava possuído de alguma força maior e o contaminou. Dias depois, voltou ao local do trabalho para ver o ambiente e assuntar sobre aquela quantidade de coisas despachadas para Iemanjá. Qualquer objeto que fosse jogado no rebojo era descartado pouco depois, sendo encontrado em uma prainha logo abaixo. Desta feita não encontrou nada, e olha que examinou o fundo do poço com o maior cuidado. Quando o rebojo mourejava para descansar, oferecia melhor visão e nada viu-lhe no fundo. Ele continuava limpo e escovado como sempre fora. Era um mistério que não encontrara explicação.
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macumba - o terreiro da morte
Action04 NOITE MACABRA Uma história envolvente narrando dois assassinatos ocorridos logo após uma sessão de macumbaria num terreiro de macumba. O pretenso pai de santo Grampola, se envolve com um homossexual enrustido e arrasta seu...