Capítulo XXVII- ... os ritos do candoblé...

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XXVII -... os ritos do Candomblé...

Na mesa redonda da manhã de segunda-feira, as descobertas sobre a investigação do crime da macumba foram trazidas à colação. A diferença de mais de duas horas entre os horários dos suspeitos no local do crime foi explicado pela presença de Marcola na Boate Gay Penélope Charmosa. No momento do relatório, todos estavam sérios, mas o clima de galhofa estampava na cara de cada um. Por alguma razão, os detalhes dos lances da malfadada diligência com aquela veadagem eram do conhecimento da galera. O relatório mostrado por Reinaldo passou longe dos acontecimentos comprometedores. Os colegas e até mesmo o delegado estavam curiosos e ansiosos para ouvir detalhes da dança, do telefone cor de rosa, da encarada da bicha louca delegado de policial, mas nada disso os dois relataram. Como eles traziam o assunto para o lado sério do trabalho, deixaram estes comentários para momentos de descontração e mais propicio. Sobre Marcola descartaram-no como executor dos crimes. Na hora provável das execuções ele estava com seu amante Carlinhos Grude na Boate Penélope Charmosa. Reinaldo falou sobre este detalhe, muito rapidamente e emendou outro assunto para não ter de dar explicações de questiúnculas.

Restava explicar porque ele esteve no sítio do crime e porque fugiu. O homem teve os meios, tinha motivos e teve oportunidade, embora presentemente houvesse um atraso considerável para a hora macabra. Marcus Travejane comentou que faltava muito pouco para fechar a investigação. Pediu urgência nas últimas diligências para não estourar os prazos. Joca e Reinaldo visitariam o bairro Morada do Morro naquela tarde mesmo para achar e prender Marcola.

Os mandados de prisões para Carmelita e Grampola chegaram na delegacia e foram entregues aos dois policiais e o primeiro endereço procurado foi a empresa de poços artesianos. As portas estavam fechadas e numa delas um aviso de luto em família. O segundo endereço obvio nestas ocasiões foi a casa dos procurados. Tudo estava fechado, perguntaram na vizinhança e nenhuma pessoa ligada a ele ou a seus funcionários faleceu naqueles dias. A fuga dos dois procurados estava caracterizada com eles abrindo chão enquanto eram livres. Nenhuma pista foi encontrada para seguir com o objetivo de prende-los. O chefe da investigação lamentou a demora na expedição dos mandados. Pensou no dilema: teve os dois à sua mercê no dia anterior, mas se os prendesse estaria agora com sérios problemas a explicar na Corregedoria da Polícia Civil.

Joca e Reinaldo chegaram ao Bairro Morada do Morro por volta de quatorze horas. O sol estava escaldante. As ruas asfaltadas da vila pareciam um deserto, mostrando aquela ilusão dum espelho d'água. Por ser um bairro novo, não tinha arborização formada. O calor parecia ser maior ainda refletindo nas paredes das casas. Havia uma mercearia estrategicamente montada embaixo duma árvore de jatobá. Deve ter sobrado da ganância de madeireiros ou talvez por não ter fuste de corte. Param a viatura na sombra dela. Entram na venda, pedindo um refrigerante nacional.

Começaram a puxar conversa com o vendeiro. Pediram tira-gosto de mortadela. A pessoa atendendo-os era boa praça, um homem passado dos sessenta anos, de cabelos brancos, ralos e barriga proeminente. Com poucas palavras informou ser corretor de imóveis e caso estivessem interessados, tinha algumas casas para vender. O preço do ágio era atrativo. Muitas pessoas com posição política no governo conseguiam ser "sorteados" com uma casa do programa habitacional e depois a repassam por debaixo do pano por um precinho de nada, já que não custou nada mesmo, senão puro puxa-saquismo. No meio da conversa, enfiaram a pergunta adrede preparada: acaso conhece Marcola?

O homem respondeu negativamente. Mostraram a fotografia dele, e tivera uma surpresa: tratava-se do Mauricio bebedor de vinho Jurubeba Leão do Norte. Vez por outra aparecia no bar. Atualmente estava morando no bairro, mas não sabia onde. Perguntaram de qual direção ele costumava vir e voltar. Foi indicado o final da rua, lá para as bandas da fazenda Monjolinho e apontou um vasto pasto verde ameaçado pelas ruas. Olharam na direção indicada avistando um tapete verde sumindo de vista até encostar na fralda do morro. Bem no alto dele avistaram uma enorme estátua com os braços abertos à moda do Cristo Redentor do Rio, abençoando o povoado.

Pagaram a despesa e saíram, tocando a viatura até à sombra daquela árvore centenária, soprava uma brisa de inigualável frescor. Ondas de ar quente resvalavam neles como se um imenso aparelho de ar condicionado despejasse frio para o chão esbarrando o ar gostoso caído do jatobá. Aproveitando aquele ambiente natural, uma renca de meninos catarrentos jogavam biloca. Reinaldo desceu da viatura e foi falar com eles. Perguntou se conheciam o Mauricio, mostrando a fotografia. Era procurado por ter perdido um filho de cinco anos, no Parque Mutirama de Goiânia e agora o encontram num abrigo de menores. A polícia desejava devolver o menino para a família. Todos se interessaram na solidariedade com alguém como eles.

O garoto foi encontrado, mas não sabia indicar o endereço da mãe. Deu o nome do dono da foto, dizendo-o morador em Senador Canedo. O homem gostava de freqüentar centro de macumba. Um dos garotos, um pretinho duns nove anos pediu para ver a foto novamente. Ele freqüentava o centro de umbanda de sua avó, inclusive estava morando nos fundos do centro, num quartinho. Daí a minutos chegaram ao Centro Espírita Pai João Grande, uma construção em tijolos de adobe ao estilo das igrejinhas de fazenda. A frente era caiada de azul-claro. A construção fora feita por leigos, as paredes eram tortas e o telhado irregular. Nalguns vãos das paredes, onde o reboco e a tinta falhavam, via-se que na composição dos adobes foi usada palha de milho rasgada.

Esta técnica antiga de construção desenvolvida pelos escravos, de fato funcionava, o barro derreteu com a chuva, mas a folha da palha escorou o dano. Para ingressar no templo, o visitante precisava passar por uma fileira de estátuas esquisitas, feitas em barro cerâmico. O conjunto tinha a imitação das estações da paixão de Cristo, porém em disposição que somente os ritos do Candomblé podiam explicar. Todas as figuras representavam homens negros com asas. Reinaldo imaginou um instante, vasculhando a memória e não se recordou de ter visto no rito católico algum anjo-da-guarda de cor preta. Joca olhou meio desconfiado para Reinaldo e acenou de mão mostrando dúvidas se deviam ou não bater chamando o morador. Ambos se lembraram das incursões não muito bem sucedidas nos domínios daquela crença. O seu parceiro parecia arredio em relação ao lugar.

Enquanto estavam ali parados naquela conferência de moucos, sobre a conveniência de invadir o local sagrado ou profano, uma senhora de mais de oitenta anos assomou à porta da casinha tosca do lado do centro espírita. Perguntou o que desejavam? Se fosse para consultas espirituais, voltassem na próxima quarta-feira depois das quatro horas. Joca olhou o parceiro esperando-o iniciar a conversa, mas como gato escaldado em água quente tem medo da fria, continuava calado, olhando para o lado. Se disfarçava como um tremendo admirador daquele tipo de arte estampado nos bonecos de barro.

Como estava olhando para a anfitriã, Joca não teve saída e perguntou pelo Mauricio. A mulher retrucou não conhecer ninguém com este nome. Na direção de onde estava olhando, Reinaldo viu um vulto esgueirar pelas frestas da janela do barracão dos fundos. Ficou atento, podia ser o suspeito. Em um segundo dissipou-lhe o medo das coisas do além e já estava adrenalinado para o improviso. Pelo visto, o procurado usava dois nomes e dependendo do local se apresentava com o mais conveniente. O policial qualificou a pergunta, mudando o nome questionado para Marcola. Ele morava ali e mostrou uma porta com cadeado. Explicando melhor: ele devia estar pra rua, a porta estava trancada pelo lado de fora. Reinaldo finalmente abriu a boca pedindo para olhar a porta. A mulher não se opôs. Apenas perguntou quem eram e o que queriam. Eles repetiram a história vendida para os garotos da sombra.

A anciã autorizou a entrada, era Yasan a Mãe Preta. Joca entrou no terreno franqueando a passagem ao parceiro, mas ele refugou o convite expresso. Pela forma como olhava aquelas estátuas, estava cismado com o lugar e com medo dalgum ataque como naquele dia de campo investigando o trabalho de mato. Como saída ao impasse, mostrou a lateral do muro do centro, dizendo vigiá-la naquele setor. Joca aceitou a desculpa estratégica do parceiro e foi pelo caminho matutando na situação: dentro de algum tempo voltaria a ter confiança em si mesmo. Levaria apenas alguns dias, possivelmente antes de terminarem aquele trabalho complicado.

Joca chegou à porta do barracão e puxou a corrente do cadeado. Como suspeitava, o malandro usava dois cadeados, um para dentro e outro para fora. A corrente passava por um buraco na tábua e no batente e assim sempre que alguém olhasse de fora imaginaria o morador na rua. Era um expediente simples, mas poderia funcionar. De fato funcionou com muitos cobradores e outros incômodos, mas não deu certo com a polícia. Joca ia bater na porta e chamar Marcola/Mauricio, quando escutou o tropel de alguma coisa caindo nos fundos. Tentou dar a volta pelo barracão, mas ele era lindeiro à divisa e o muro impedia passar. Por cima havia uma fileira de pregos para impedir o acesso de intrusos.

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macumba - o terreiro da morteWhere stories live. Discover now