Sunny estava esperando por ela. Com um vestido preto longo, os cabelos grisalhos presos num coque apertado na altura da nuca, estava sentada na beira da cama, a bolsa no colo.
- Cassidy - disse afetuosamente, estendendo a mão. Sua pele era escura e lisa, sem nem uma ruga sequer, mas um dos olhos estava nevoado por uma catarata que ela se recusava a remover. Não confiava em médicos com bisturis ou lasers, ou qualquer outra coisa que usassem.
- Achei que você gostaria de visitar Chase - disse Cassidy, aproximando-se dela e tomando-lhe a mão. Nunca se sentira à vontade perto da sogra e odiava pensar que Sunny fora amante de seu pai, mas ainda era difícil vê-la ali, longe da casa que amava.
- Tenho andado ansiosa por isso. - Sunny levantou-se com dificuldade. Embora sua pele fosse tão macia quanto a de uma mulher com metade de sua idade, suas articulações estavam acometidas por artrite - situação que só piorara, confidenciara a Cassidy, anos antes, por não poder ir à mata em busca das ervas apropriadas. Mesmo quando as solicitava de uma lojinha de produtos naturais, o médico não permitia que tomasse nada a não ser o que ele prescrevia, comprimidos em potes, produtos químicos sintéticos distribuídos por corporações gigantescas. Sunny não acreditava em drogas feitas pelo homem e frequentemente se recusava a tomar medicamentos.
Seus dedos envelhecidos apertaram a mão de Cassidy.
- Alguma coisa está errada.
- Sim, o incêndio e...
- Não, outra coisa - insistiu, e Cassidy sentiu um nó no estômago. Deslizando os dedos pela mão da velha, não queria acreditar no poder das visões da sogra, apesar do fato de que ela, fora todos seus argumentos contrários, havia se casado com o homem que Sunny previra.
- Aqui está a sua bengala - ofereceu-lhe a bengala de madeira escura e lisa, o cabo curvo, na forma de um pato silvestre.
- Talvez você não reconheça Chase - avisou Cassidy, quando desceram o corredor acarpetado que ficava depois das paredes tom de amêndoa, onde aquarelas em tons pastel haviam sido penduradas nas divisórias de gesso.
- Conheço meus filhos.
- Mas o rosto dele...
- Posso tocá-lo, não posso? - Sunny aguardou a porta eletrônica ser aberta pelo recepcionista louro sorridente, que tinha apenas de apertar o botão sob sua mesa. Com um zumbido, a tranca foi solta e Cassidy empurrou a porta de vidro.
- Está todo coberto por ataduras e talvez não queira que você...
- É meu filho. Posso tocá-lo - disse, com insistência. - Chase é um bom menino. - Fez a afirmação com certa rapidez, como se para se convencer do que dizia. - Cassidy imaginou com que frequência Sunny teria brigado com sua consciência, a fim de ainda poder manter a fé no filho que a havia trancado numa clínica que ela detestava.
Desceram lentamente os degraus até a calçada, onde o jipe estava estacionado. Cassidy ficou segurando a porta do passageiro, enquanto a sogra se acomodava no banco traseiro.
Em poucos minutos, estavam passando pelos portões abertos, Sunny acenando para o guarda.
- O que você gostaria de me perguntar?
Então ela havia pressentido as perguntas que corriam por sua mente. Apenas com um mero toque. Isso era muito estranho.
- Não... não é nada. - Aquela não era hora nem lugar de lhe fazer perguntas sobre seus amores antigos, sobre Rex Buchanan.
- Não minta para mim. - Com um sorriso tristonho, Sunny afastou uma mecha solta de cabelos do rosto. - Quer saber sobre o seu pai.
Era muito esquisito, quase como se pudesse ler sua mente.
- Descobriu que fomos amantes - disse Sunny, e o ar dentro do jipe pareceu ficar mais pesado.
- Sim - disse Cassidy, assustada, ao entrar no trânsito.
- Ele lhe contou?
Pelo amor de Deus, como ela sabia? As mãos de Cassidy ficaram suadas de repente, em contato com o volante. Ela pigarreou:
- Eu, ah, não acho que fosse essa a intenção dele.
- Já estava na hora.
O coração de Cassidy batia freneticamente, com tanta força que ela mal podia respirar.
- Eu devia ter ficado sabendo antes de me casar com Chase. Eu devia ter ficado sabendo que você estava envolvida com o meu pai.
- Chase sabia.
Cassidy quase perdeu o controle do jipe e praguejou:
- Ele sabia?
- Bem, suspeitava. Nunca admiti.
- Pelo amor de Deus, ele sabia? - Sua mente gritava a verdade. Por que não lhe contara? Por quê?
- Acho que viu seu pai uma vez, quando ele foi me visitar. Chase era só um menino na época e, depois disso, tomamos mais cuidado.
O cérebro de Cassidy latejava freneticamente com perguntas que ela não ousava verbalizar, suspeitas que nunca veriam a luz do dia.
- Não estou entendendo.
- Lucretia era frígida.
- Mas você podia ter engravi... Quer dizer...
- Engravidei. - Sunny lançou-lhe um olhar sombrio. - Está na hora de você saber a verdade.
- A verdade - repetiu ela. Com quantas mentiras teria convivido sem saber? Seu coração pesou quando saiu dirigindo sem pensar, reduzindo automaticamente nas curvas, evitando, por hábito, os carros que vinham na mão contrária, embora sua mente estivesse desligada, as ações, automáticas.
- Buddy foi filho do seu pai - disse, sem rodeios.
- Buddy? - repetiu Cassidy, atordoada. - Não Brig...?
Sunny suspirou levemente.
- Brig era filho de Frank. Assim como Chase.
- Mas como você pode ter certeza?
Com uma expressão de superioridade reservada às mulheres que haviam concebido e dado à luz, Sunny fuzilou Cassidy com o olhar.
- Eu sei.
- Ai, meu Deus! - Cassidy tentou respirar profundamente, pensar racionalmente. Então Sunny e Rex haviam sido amantes, e daí? Isso não mudava as coisas. Ela não era casada com seu meio-irmão, não fizera amor com um parente. Seu estômago, tão sensível ultimamente, apertou-se e lançou acidez para a garganta.
- Eu jamais teria deixado você se casar com Chase se ele fosse seu irmão.
- Meu Jesus! - suspirou Cassidy, assim que Prosperity surgiu à vista. Baixou o vidro do carro, na esperança de que o ar fresco limpasse sua mente. - O que aconteceu com Buddy? - perguntou, mas não tinha certeza se queria ouvir a resposta. Ele poderia estar morto, internado em um manicômio, vegetando e sem reconhecer ninguém, incapaz de reconhecer a própria mãe.
- Buddy está num lugar seguro. - Tocou o braço de Cassidy com dedos macios. - Vive com o pai.
- O quê?
Sunny sorria por dentro, como se estivesse satisfeita por ter enganado a nora.
- Você cresceu com Buddy, Cassidy.
- Mas... - Então foi que lhe bateu, como um raio que explodisse em seu cérebro. - Willie - sussurrou ela, o estômago se revirando. Como não adivinhara? Como ninguém na cidade havia ligado os fatos?
- Sim - disse Sunny, o alívio fazendo a voz tremer um pouco. - Finalmente, depois de todos esses anos, poderei ir vê-lo.
- Mas por que... por que escondê-lo?
Ela olhou pela janela.
- Foi ideia do seu pai. Depois do acidente em que Buddy quase morreu afogado no riacho, ficou claro que ele nunca seria... bem, normal de novo. Muito dano cerebral por causa da falta de oxigênio. Rex se ofereceu para tomar conta dele, certificar-se de que fosse colocado na melhor clínica disponível. Ele pagaria todas as contas e, uma vez que Frank e eu não poderíamos pagar... bem, foi quando Frank foi embora. Não por causa de Brig, mas por causa de Buddy.
Ela parecia tão lúcida, as lembranças do passado tão claras.
- Como você descobriu que Buddy era Willie?
- Rex me contou; ah, isso foi anos atrás, quando ele já era quase adulto. A clínica particular onde Willie... esse foi o nome que Rex lhe deu depois de pagar o médico que cuidava dele... enfim, a clínica estava para fechar, o hospital fora vendido para um grupo de investidores que tinham planos de derrubá-lo e construir um shopping ou qualquer outra coisa assim... - Balançou os dedos como se isso não fosse importante. - Rex decidiu que Willie iria morar com ele. Ele não era tão crescido, acho que tinha cerca de dez, doze anos... você era só uma garotinha. No início, ele morou com a família daquele contramestre de vocês. Mac alguma coisa, depois Rex lhe deu um quarto lá em cima, na cocheira. Acredito que viva lá desde então.
Cassidy não se lembrava de Willie indo morar em casa, com seus pais. Desde que conseguia se lembrar, ele estava lá, em volta da cocheira, dos celeiros ou da piscina.
- Minha mãe sabe?
Sunny negou com a cabeça.
- Ninguém sabe. Só Rex e eu. Nem mesmo Buddy.
Era coisa demais para aguentar.
- Acho que você não deveria contar nada a Chase. Pelo menos, até ele melhorar.
Sunny lançou-lhe um olhar de desprezo.
- Eu nunca faria qualquer coisa que prejudicasse meus filhos - disse, como se Cassidy fosse obrigada a entendê-la. - Nunca.
- Ótimo. - Cassidy virou e embicou o carro pelas esquinas arredondadas da rua arborizada que levava ao Hospital Northwest General. Imaginou se a história sobre Buddy McKenzie e Willie Ventura estava completa ou se havia buracos abertos para seu próprio bem. Sunny parecia surpreendentemente lúcida, mas, ainda assim, costumava divagar; fatos e ficções misturavam-se às vezes. Quantas vezes Chase não verbalizara sua preocupação com relação à saúde mental da mãe? Antes de interná-la, sempre se preocupara com sua segurança.
Deixou a sogra perto da porta de entrada, estacionou e logo se encontrou com ela na recepção.
Juntas, pegaram o elevador até o segundo andar e, diante da porta do quarto de seu marido, fez uma pausa, sabendo que ele ficaria furioso por ela desafiá-lo tão abertamente ao trazer sua mãe ao hospital.
- Chase? - chamou baixinho, entrando no quarto em que o marido se encontrava inerte.
Sunny ficou tensa ao ver o filho, mas seguiu em frente, com firmeza.
- Pode me ouvir? - perguntou Sunny, e o olho descoberto que se encontrava fechado abriu-se de repente. - Foi o que achei.
O olho se franziu para a mãe, virando-se para Cassidy e acusando-a de coisas terríveis.
- Ela queria ver você - adiantou-se Cassidy.
- Estão tratando você bem? - Sunny aproximou-se e, embora Chase tenha tentado esquivar-se, tocou-lhe os dedos inchados com as mãos sensíveis e investigativas.
Ele piscou rapidamente quando ela fechou os olhos e sussurrou algo em cherokee. Cassidy não conseguia entender nenhuma palavra, mas parecia que Chase sim. Dirigiu o foco à mãe, e um pouco de sua raiva pareceu desaparecer.
- Você ficará bom - disse ela. - Levará tempo, mas ficará curado. - Lágrimas tomaram conta dos olhos dela quando afrouxou os dedos. - Fiquei preocupada contigo.
Chase desviou o olhar, olhando para além de onde estava a mãe, para a parede atrás dela, passando a impressão de que se seguia uma tensão muscular em seu rosto, embora, com a palidez e o inchaço, fosse difícil ter certeza.
Cassidy abriu a porta.
- Estou ali no corredor - disse, entendendo que não deveria interferir entre mãe e filho. Não que algum dia tivesse interferido. Chase jamais permitira. "Eu cuido da minha mãe, você cuida da sua", sempre dissera ele quando havia algum problema com Sunny. Era como se ele a considerasse um problema pessoal seu; mas sempre se sentira assim, mesmo antes de Brig ir embora. Cassidy passou pelo posto de enfermagem e ocupou lugar numa saleta de espera, perto de uma janela. Daquele ponto privilegiado, podia tanto olhar para fora quanto para a porta do quarto de Chase, de forma que veria quando Sunny aparecesse. Mais tarde, falaria pessoalmente com o marido, diria a ele que T. John estava prestes a identificar o homem no CTI.
Quando olhou pela janela, viu a caminhonete Cruiser do departamento do condado chegando ao estacionamento. Os faróis reluziram quando estacionou perto da porta frontal. Os Detetives Wilson e Gonzales abriram as portas do veículo, chutaram-na para fechá-la e dirigiram-se apressados ao hospital. Com óculos de sol firmes no rosto, expressão fechada, eles sumiram de vista. As entranhas de Cassidy ficaram gelatinosas. Disse a si mesma para permanecer calma, que, mesmo que eles subissem para interrogar Chase, ela administraria a situação. Sentira vontade de avisar ao marido que eles sabiam que já podia falar, que ela lhes dissera que ele os estava cozinhando em banho-maria, mas esperava lhe contar quando estivesse sozinho, sem Sunny ouvindo.
Agora, não tinha importância. Preparou-se para o pior, aguardando que os dois detetives passassem como uma bala pelo posto de enfermagem e lhe lançassem um olhar cheio de ódio. Com um ruído suave, o elevador parou e dele saiu um casal de idosos, um homem grisalho, ajudando uma senhora encurvada, que se arrastava lentamente pelo corredor.
Cinco minutos haviam se passado, depois dez. Achou que talvez Wilson tivesse parado no CTI. Também havia a possibilidade de que estivesse no hospital por qualquer outra razão - certamente havia outros acidentes a serem investigados -, mas não podia evitar o sentimento de inquietação de que algo estava errado.
Olhou de relance para a porta do quarto de Chase, ainda fechada; em seguida, olhou novamente para fora do estacionamento onde a caminhonete Cruiser estava estacionada na frente da porta de entrada. Umedeceu os lábios e disse a si mesma que estava apenas preocupada, que não havia motivos para ficar nervosa, mas, ainda assim... seus instintos de jornalista estavam a todo vapor. Alguma coisa estava acontecendo. Alguma coisa grande. Ela apostaria todo o dinheiro de sua conta bancária que era algo que tinha a ver com o incêndio. O elevador chegou de novo. Dessa vez, foi um médico que apareceu. O rosto com uma máscara de preocupação.
Cassidy não conseguiu esperar nem mais um segundo. Foi ao posto de enfermagem.
- Vou dar uma corrida ao meu carro só por um minuto - disse, mentindo com facilidade para a enfermeira robusta sentada à mesa. - Você se importaria de pedir à minha sogra, que está no quarto 212 com Chase McKenzie, para me esperar aqui? Volto dentro de um segundo.
- Sem problema. - A enfermeira nem mesmo ergueu os olhos.
- Obrigada. - Cassidy atravessou o corredor e aguardou o elevador. Em poucos segundos, estava no corredor em frente ao CTI, imaginando como poderia entrar sem a companhia da polícia.
Pegando o telefone que se conectava diretamente com o Centro de Treinamento Intensivo, ouviu vozes, vozes furiosas, e então as portas se abriram com violência. Detetive Wilson, mascando chicletes de forma escancarada, as feições fechadas numa careta séria, passou a passos largos. Gonzales em seu encalço.
Os óculos de sol de Gonzales estavam enfiados no bolso da frente de sua camisa, e seus olhos, escuros e agourentos, pousados com tanta intensidade nos de Cassidy que ela deu um passo para trás e pôs o telefone de volta no gancho.
- Veja só quem está aqui! - disse Wilson, prolongando as sílabas, incapaz de esconder seu sarcasmo. - Parece que você está sempre por perto quando surge algum problema.
- Problema? - repetiu ela, sentindo o chão começar a tremer sob seus pés.
T. John passou a mão pelos cabelos curtos e suspirou.
- Nosso homem ali. - Engatou o polegar nas portas, que se fechavam atrás dele. - Não conseguiu. O desconhecido, ou seja lá quem for, acabou de morrer há vinte minutos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O último grito
RomanceProsperity, Oregon, 1977. Um incêndio criminoso no moinho da abastada família Buchanan faz Cassidy, filha caçula de Rex Buchanan, dono da propriedade e de metade da cidade, ver sua adolescência e seu amor serem levados pelo fogo. A autoria do incênd...