Cassidy havia esquecido como Chase podia ser teimoso, como podia ser cabeça-dura quando o orgulho se metia no caminho. Estacionou perto da porta da frente da casa e, antes que o jipe tivesse parado completamente, ele apoiou os pés de borracha das muletas no cimentado e se pôs de pé. Suava, seu rosto, ainda descolorado, estava torcido com o esforço, mas não aceitaria a mão de Cassidy como ajuda, da mesma forma como não a deixara ajudá-lo a descer da cadeira de rodas do hospital e não havia trocado nenhuma palavra com ela dentro do carro.
Ela lhe fizera concessões. Ele não gostava da sensação de não estar no poder. Ainda estava furioso por ela ter agido contra sua vontade e ter levado a mãe para vê-lo e, agora, ainda por cima, ela se encontrava desaparecida. Estava também se adaptando ao fato de que, talvez, mancasse pelo resto da vida. Havia passado por um trauma inimaginável; quase morrera. E tinha um segredo: era o único que sabia, com certeza, que seu irmão estava morto.
Mesmo assim, Cassidy estava cansada das atitudes dele. Essas atitudes a magoavam. Não havia jeito. Tentava ser compreensiva e solidária, mas, naquele exato momento, sua paciência estava se esgotando. De verdade.
- Deixe eu abrir para você - disse ela, quando ele se equilibrou na perna boa e foi andando até a porta. Ainda ficaria com ferros na boca por mais uma semana; a perna ainda engessada.
Cassidy destrancou a porta da frente, escancarou-a e ficou esperando do lado de dentro. Chase passou por ela a caminho do escritório.
- Vou pegar a sua mala.
Sem resposta, mais uma vez.
Contando silenciosamente até dez, ela voltou para o carro e lembrou-se, mais uma vez, de como era difícil para ele falar. Seu rosto ainda estava inchado e pálido, e uma atadura lhe tapava o olho danificado. Por sorte, a córnea estava quase boa, e logo ele seria capaz de enxergar com os dois olhos de novo.
Pegou a pequena mala de náilon do banco de trás, levou-a para dentro e a deixou no quarto dele, perto do corredor dos fundos da casa. Retornou ao escritório e o viu tentando pegar o telefone.
- O que você está fazendo?
Ele não respondeu.
- Chase...
- Me deixe em paz - disse, finalmente, com sua voz desagradável e abafada. Seu olhar se voltou para a esposa e a penetrou com tanto ódio que ela quase caiu para trás. Ao ouvir a voz do outro lado da linha, virou as costas para ela.
- Sim, eu gostaria de chamar um táxi - disse.
- Pelo amor de Deus, Chase, não... - Cassidy atravessou apressadamente a sala.
- Moro afastado da cidade... uns seis quilômetros... - Sem pensar, Cassidy desligou o telefone.
- Que porra é essa? Pelo amor de Deus, Cassidy...
- Você não vai a lugar nenhum. Não hoje à noite.
- Não posso ficar aqui.
- Por que não? Achei que estivesse louco para sair do hospital.
Ele largou o fone e foi para o bar.
- Sabe por que não.
- Por que era para estarmos separados?
- Amém. - Pegou uma garrafa de uísque e atrapalhou-se para pegar um copo.
- Você não devia beber. Os analgésicos...
- Virou minha mãe agora, é? - perguntou, ignorando-a. - Minha mãe está desaparecida, lembra? - Cassidy enrijeceu. - E, com certeza absoluta, você não é meu chefe...
- Chase, por favor...
- E, da última vez que vi você, também não era Jesus Cristo; portanto não acho que deva me dizer o que fazer.
- Só estou tentando ajudar.
- Então me deixe sozinho - reagiu, tomado de raiva. - Se me lembro bem, era isso o que queria.
- Está magoado...
- E você está me deixando enojado com essa sua falsa preocupação. Todo mundo sabe que isso é uma farsa, então por que não para? - Recostando-se na parede, serviu-se da bebida, espirrando um pouco dela na bancada de vidro. Levantando o copo, percebeu o olhar dela no espelho acima da pia. - Saúde! - escarneceu e virou o uísque.
- O que você está pensando em fazer? Beber até morrer?
- Não faço ideia.
Deu um passo em sua direção.
- Por que está me tratando assim?
Todos os músculos se enrijeceram em seu corpo, e ele bateu o copo vazio com tanta força que ela achou que a bancada de vidro fosse quebrar.
- O que você acha?
- Que é por causa do divórcio.
Chase olhou-a com tanta raiva que Cassidy ficou sem ar.
- Bingo.
- Chase, se pelo menos pudéssemos discutir o assunto direito...
- Já discutimos. Você quer dar o fora. Pois dê. Pode sumir por aquela porta; para ser sincero, não dou a mínima. - Virou-se e serviu outra dose. Os tendões de sua nuca saltaram, e a mão começou a tremer quando segurou o copo.
- Acho que seria melhor se eu ficasse por aqui, ajudasse você a ficar de pé de novo, tivesse certeza de que está bem.
- Aí então, você faria a sua parte e ficaria em paz com a sua consciência? Pode esquecer. - Com um floreio, levantou o copo como se fosse um rei erguendo a espada, ao duelar com seu mais hábil cavaleiro. - Estou liberando você. Não me deve nada.
- Quer que eu vá embora?
- Não, Cassidy. A verdade é que não ligo para o que você fizer. - Chase cambaleou um pouco, e Cassidy aproximou-se, esticando o braço antes que ele se esquivasse com tanta velocidade a ponto de perder o equilíbrio e cair contra a parede. - Não toque em mim, Cassidy - alertou-a, a voz baixando uma oitava. - Não me faça favores, não tente me bajular como esposa dedicada e amorosa e, pelo amor de Deus, não me toque!
Com um baque, as muletas bateram no chão. Cassidy teve um sobressalto. Chase agarrou-se no encosto do sofá. Parcialmente curvado, os músculos de seu braço sadio lhe servindo de suporte, ele chegou tão perto que ela pôde sentir seu hálito de bebida. O olhar dele se concentrou no dela com tanta intensidade que ela sentiu um nó na garganta. Será que via um breve brilho de paixão em seu olho, o ardor antigo que uma vez os unira, ou seria apenas imaginação sua?
- Vamos deixar uma coisa bem clara, esposa - disse, num suspiro rude. - O incêndio não mudou nada. Você não me ama, e eu, com certeza absoluta, não amo você, portanto vamos simplesmente viver esse tipo de casamento hipócrita até eu ficar de pé novamente, minha parte na empresa ser vendida pelo preço que eu quero, e você e eu nos separarmos para sempre. Entendeu?
Afastando-se cambaleante, agarrou-se às muletas, jogou-as para baixo do braço e bateu com força no chão. Os dedos de Cassidy se fecharam, formando punhos cerrados; ainda assim, ela sabia que ele estava certo. Ela já havia se decidido pelo divórcio. O incêndio fora apenas uma complicação que tornaria mais lento o processo. No entanto, ficou surpresa por ele querer vender sua parte da empresa. Durante anos, o trabalho fora sua amante; as instalações, as propriedades e os passivos das indústrias Buchanan, seus únicos interesses.
Com a garganta seca, Cassidy falou:
- Escute, Chase. Tem uma coisa que você deveria saber... algo que eu certamente deveria ter falado no hospital, mas eu não queria aborrecê-lo.
Ela percebeu os músculos de seu ombro ficarem tensos por baixo da camisa, mas Chase não se virou para encará-la.
- Você arrumou um amante - respondeu ele, um tom de derrota permeando suas palavras.
- Um amante? - Se a situação não fosse tão trágica, ela teria rido. Esticou os dedos à força e uniu as palmas das mãos. - Nunca fiquei com ninguém além de você.
- Mentira.
- Não depois de nos casarmos - insistiu ela. Já haviam falado sobre isso centenas de vezes. - Mas, se você acredita ou não em mim, isso não faz diferença a esta altura dos acontecimentos. O que acho que você deveria saber é que a sua mãe me contou sobre Buddy.
- Buddy?
- Sim, seu irmão... bem, meio-irmão. Metade seu, metade meu.
- De que diabo está falando? - Girando em torno da muleta, as veias do pescoço se projetando, encarou-a com tanto ódio que ela se encolheu.
- Buddy... Willie... é filho do papai. Papai e Sunny tiveram um caso durante anos.
- Mentira!
- Sunny disse que você sabia, que os pegou juntos uma vez.
- Não... não me lembro - disse ele, sentindo certo incômodo na garganta. - Não posso acreditar...
- Buddy está vivo, Chase! Foi por isso que o seu pai foi embora. Não porque achava que Brig não era filho dele. - Chase ficou tenso, e ela acrescentou em seguida: - Conheço os boatos, passei anos ouvindo as fofocas da cidade.
- História antiga - resmungou ele, segurando com firmeza os cabos das muletas. - Meu Deus, não acredito que estamos tendo uma conversa assim. Que tipo de incesto você está querendo me impor?
- Pergunte a Sunny. Pergunte a Rex. É verdade, Chase. Por que eu iria mentir?
- Só Deus sabe - disse ele, com um toque de lástima em suas palavras.
- Você é impossível!
- Dou duro para ser.
- Buddy é seu irmão!
- E seu.
- Isso!
Por trás dos ferros, seu queixo pareceu enrijecer, e seu olho furioso tocou fundo sua alma. O ar passou silvando por seus dentes.
- Por que eu deveria acreditar em você?
Cassidy levantou as mãos, no alto.
- Por que eu iria inventar uma história dessas?
- Não sei. - Várias emoções lhe passavam pelo rosto. Emoções as quais não conseguia dar nome. Chase fechou o olho por um segundo e, de repente, pareceu perigoso, inconstante e extremamente inalcançável.
- É a verdade, Chase, e, francamente, não faz sentido? Você uma vez não admitiu para mim que achava que Buddy devia estar vivo em alguma instituição? Não passou a vida toda pensando nele? E o papai, sempre tão rigoroso com relação a ele continuar trabalhando...
- Onde ele está? - quis saber, a voz baixa, apertando o olho, desconfiado. - Onde?
- Estava preso, mas já saiu agora.
- Preso? Por quê?
- Por causa do incêndio. Foi ele que encontrou a carteira nas cinzas da serraria. - Chase ainda parecia cético. - É o Willie, Chase. Willie Ventura é Buddy. Ele é seu irmão, é meu irmão, e...
- Chega! - esbravejou. - Que carteira?
- A carteira que todos, inclusive a polícia, estão achando que pertencia ao desconhecido... o homem com quem você ia se encontrar naquela noite. Como Willie a encontrou ninguém sabe. Ele está em casa, com a mamãe e o papai. A mamãe telefonou. Está muito abalada por causa disso. Por causa de tudo.
- Meu Deus!
- E o detetive Wilson quer conversar com você. Acredito que virá logo para cá. Já interrogou o Willie, e não sei o que descobriu. Nem sei se Willie estava na serraria naquela noite. Mas Wilson vai saber. Ele vai juntar todos os pedaços e está esperando que você lhe conte a verdade.
Chase a ficou encarando por um bom tempo, o olhar duro, e, embora a expressão em seu rosto não tenha se alterado - aproximava-se do grotesco - o olhar era de pura arrogância masculina, um que atingiu um lado feminino seu que ela esperava não existir mais. Por um segundo, Cassidy mal conseguiu respirar.
- É claro que ele espera ouvir a verdade. E por que, em nome de Deus, eu lhe diria qualquer outra coisa?
VOCÊ ESTÁ LENDO
O último grito
RomansaProsperity, Oregon, 1977. Um incêndio criminoso no moinho da abastada família Buchanan faz Cassidy, filha caçula de Rex Buchanan, dono da propriedade e de metade da cidade, ver sua adolescência e seu amor serem levados pelo fogo. A autoria do incênd...