Nas entrelinhas da mão

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A Literatura deveria ser um ramo da Biologia: trato as palavras como seres vivos que de uma hora para outra podem decolar do papel e sair por aí, sem autor nem destino. Por enquanto, tenho 13 anos e nenhum livro publicado, mas vivo sonhando em virar escritora e viver da imaginação, que no meu caso detesta ordem cronológica e alfabética e vive adiando o ponto final. Gosto de deixar a mão solta pra escrever o que bem entender e pular de um assunto pra outro à vontade, sem me preocupar com data, lógica ou bom senso. Penso em ser roteirista de cinema ou talvez autora de novelas; modéstia à parte, acho que levo jeito pra inventar histórias cheias de surpresas e reviravoltas.
O problema das novelas é o tamanho: haja paciência pra aturar a mesma história durante meses! Não sei como minha mãe agüenta engolir tantos capítulos sem saber quem vai terminar com quem, quem é o autor das cartas anônimas ou como morrerá a megera que espalha veneno na vida das outras personagens.
Meu pai também curte novela.Finge que não, mas curte. Fica lá, sentadinho na sala, com um jornal na frente do rosto, e de vez em quando dá uma olhada por cima das notícias pra conferir a telinha.
Outro dia, a minha mãe perguntou por que ele não fazia dois furinhos no jornal. Meu pai se enfezou com a brincadeira, disse que não podia nem ler em paz e saiu da sala mais azedo que o dono da imobiliária da novela das oito. Mas antes amassou o jornal, esticou o dedo e falou que toda novela só deveria ter um capítulo, o último, que é quando acaba a rotina.
Como futura escritora, achei a sugestão bastante interessante: novela com um único capítulo ficaria menos cansativa, sem contar que poderia faturar mais ibope. Mas a minha mãe não achou nenhuma graça. Na verdade, ela começou a chorar, só que em silêncio, o olho pregado na tevê como se estivesse emocionada...com uma propaganda de sabão em pó!
Professora de História na faculdade, minha mãe é especialista na vida e obra de Joana d'Arc - especialista, tiete e devota. No curso de doutorado, ela defendeu a tese de que a padroeira da França tinha sido a primeira feminista da história e recebeu a nota máxima, apesar de enfrentar uma banca examinadora composta apenas por homens.
Mas, ao contrário da santa guerreira, minha mãe só é feminista da boca pra fora e da porta da sala de aula pra dentro. Esse papo de mulher independente, dona do próprio nariz arrebitado, não funciona lá em casa. Diante da família, ela se comporta como uma esposa passiva e resignada, que se limita a resmungar pelos cantos da casa (existe pior forma de silêncio?) quando o maridão deixa a toalha no chão do banheiro, passa as noites de sábado jogando futebol com os colegas da clínica ou esquece o aniversário de casamento.
Ao saber que estva grávida de uma menina, minha mãe decidiu me dar o nome de santa. Meu pai não gostou da idéia: fazia questão de que a primeira filha se chamasse Dalva, como a mãe dele, que tinha morrido recentemente e merecia uma homenagem. Depois de muita discussão e palpites da família inteira, meus pais fizeram um pacto esdrúxulo e me batizaram com esta obra-prima: Joana Dalva! Mas foi apenas uma trégua. Minha mãe não se entendia com a sogra e só me chama de Joana, enquanto meu pai, por pura birra, insiste em me tratar por Dalvinha.
Não sei se foi nessa época que começaram as brigas, mas cismei que a escolha do meu nome ajudou a estragar o casamento dos meus pais. Pra me livrar dessa culpa, adotei uma atitude radical: um dia, no meio do almoço, quando os dois trocavam alfinetadas por causa do tempero do bife, subi em cima da cadeira e prometi que dali pra frente eu iria escovar os dentes depois das refeições e passar fio dental e arrumar a minha cama e comer verduras todos os dias, incluindo brócolis e domingos, e não me esquecer de apertar a descarga nem deixar a luz do banheiro acesa nem beliscar o meu irmão se ele começasse a me imitar. Eu parecia uma política em plena campanha, candidata ao cargo de filha perfeita.
No fundo, não sei se teria paciência pra cumprir todas aquelas promessas, por isso fiquei superaliviada quando meu pai (que é dentista, por isso falei em escovar os dentes e passar fio dental) me pediu pra sentar, passou a mão no meu queixo e disse que não era por minha culpa que ele e a mamãe discutiam.
Pela primeira vez em muito tempo, os dois estavam de acordo. Minha mãe explicou que ninguém tinha culpa de nada, acontece que muitos casais passam por crises, isso não é nenhum fim do mundo. Logo depois, mudou de assunto e falou que era melhor a gente comer tudo, pois só iria ganhar sobremesa quem raspasse o prato e não deixasse pra trás nem um grãozinho de arroz.
E que sobremesa: pudim de leite condensado com cobertura de caramelo!
Seria hora de ficar calado, sonhando com o pudim em silêncio, mas o intrometido do Xandi (o nome do meu irmão foi uma homenagem a Alexandre, o Grande) fez a gentileza de perguntar: "Crise? Que bicho é esse?". E acabou reacendendo o combate entre Dr. Nélson e Prof° Sônia, cada um falando mais alto que o outro pra ver quem explicava melhor o sinônimo de crise conjugal.
Quando quer apressar a sobremesa, meu irmão costuma esconder a comida debaixo da folha de alface ou então empurra o resto para o pátio da vó Nina. Mas nesse dia inventou uma tática mãos ousada-e também muito mais nojenta! Meu estômago gritou eca e quase virou do avesso quando ele encheu o garfo com arroz, feijão e bife e foi derramando tido dentro dos bolsos do casaco. É isso mesmo: o maluco escondeu o almoço no uniforme! E depois aonda teve a cara-de-pau de exibir o prato vazio, passar o guardanapo na boca e pedir a monja mãe pra trazer a sobremesa.
Foi aí que aconteceu a catástrofe do dia! Quando minha mãe voltou da cozinha, equilibrando na bandeja o trêmulo pudim, Xandi cismou de perguntar se ela e o meu pai estavam se separando. É ou não é pra perder o apetite? Acho que meu pai ia dizer alguma coisa, mas ele se engasgou e disparou a tossir. Minha mãe ficou tão nervosa que deixou cair a bandeja - uma peça de cristal caríssima, presente de casamento.
Meu irmão percebeu que tinha dado um fora e tratou de fugir da mesa. Mas não foi longe. Depois de escorregar numa poça caramelada, ele bateu a cabeça na quina da estante e desabou as costas no sofá, derramando na almofada o almoço escondido dentro do casaco.
O acidente rendeu três pontos na testa e uma semana sem videogame.

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