Cinderela da...3

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   A aula do Xandi termina às cinco; como a escola fica perto do shopping, ainda dava tempo pra fazer um lanche. Pensei que minha avó ia querer alguma coisa leve, tipo chazinho com cream crackers. Que nada! Ela disse que tinha o estômago adolescente e me arrastou em direção à praça de alimentação, determinada a enfrentar um sundae duplo com cobertura de chocolate e leite condensado.

   A maioria das lojas era novidade pra vó Nina, que virava a cabeça de um lado para o outro como se estivesse assistindo uma partida de tênis. Mas o que mais me chamou sua atenção (a ponto de perder a pressa de ir tomar sundae) foi um quiosque meio escondido no canto do corredor. Olhando através do vidro, vi uma loura de cabelo curto, quase raspado, com uma trancinha magrela escorrendo pela nuca, e um cara com físico e aparência de homem das cavernas, os braços prateados de pulseiras e os músculos quase rasgando a camiseta cavada. Os dois estavam curvados sobre a cadeira de uma garota que devia ter mais ou menos a minha idade e estava de boca aberta. Mais ainda: com a língua de fora!

   A loura trabalhava como assistente do homem das cavernas e segurava uma bandeja inox com tesoura, pinça, agulhas e outros badulaques cirúrgicos. Por causa da máscara e das luvas, minha avó me perguntou se ele era dentista ou otorrino. Eu disse que nem uma coisa nem outra. E apontei para o quadro pendurado na parede:

 E apontei para o quadro pendurado na parede:

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   Com o nariz pregado na vitrine, vó Nina embaçava o vidro e não conseguia enxergar direito. "Que tal se a gente entrasse no estúdio? " Ela gostou da ideia e me seguiu. A loura disse boa-tarde e me deu a impressão de que usava aparelho. Logo notei que tinha me enganado: a gengiva superior era bastante larga e exibia uma fileira de joias que parecia uma terceira arcada dentária. Já o piercing do homem das cavernas ficava pendurado na testa, o único lugar do seu corpo que não era peludo.

   O cara falou para gente ficar à vontade e explicou à garota que não dava para furar a ponta da língua: "Senão, você pode até perder o paladar". Ela respondeu que seria ótimo não sentir gosto de nada, assim não teria vontade de vomitar toda vez que a mãe lhe empurrasse brócolis. Apesar dos protestos, acabou concordando em botar o piercing no meio da língua.

   O piercer (é assim, segundo Danyelle, que se chamam os profissionais dessa área) pediu à loura para preparar o antisséptico e obrigou a garota a bochechar o líquido escuro que provocou uma careta. A assistente prestava atenção em cada passo do mestre. Ele tirou do bolso uma caneta hidrocor, marcou o ponto da perfuração e espetou a agulha sem piedade nem anestesia. Senti um arrepio nos ossos e cobri os olhos com as mãos. Mas seria melhor ter tapado as orelhas, para não ouvir as informações técnicas sobre o cateter que penetrava logo atrás da agulha e abria caminho para a joia.

   Assim como nos filmes de terror, só tive coragem de olhar depois que o pior já tinha passado. O homem das cavernas explicou que a boca é um zoo de bactérias, por isso o piercing oral requer cuidados especiais contra infecções e outras consequências desagradáveis, como escoriações na gengiva, inchaço e, em casos mais raros, até mesmo rachadura de dentes ou aspiração da joia. É claro que ele só utilizava agulhas descartáveis, e os instrumentos eram esterilizados numa estufa made in Hell, mas o tempo de cicatrização depende em grande parte do bom senso do paciente, que nos três primeiros dias deve chupar gelo e beber muita água gelada, fazer jejum de beijos e temperos, deixar as unhas longe da boca e resistir à tentação de esticar a língua de cinco em cinco minutos para mostrar a novidade a colegas e vizinhos.

   Enquanto tirava as luvas cirúrgicas, ele perguntou como eu me chamava e se preferia tatuagem ou piercing. Só tive tempo de responder o meu nome. A loura se meteu na conversa para dizer que um barbell na sobrancelha, de ouro branco, faria um contraste divino com meus olhos escuros. Barbell? O piercer riu da minha ignorância e tirou da vitrine um pino com duas esferas, uma em cada ponta, muito parecido coma joia que a outra tinha espetado na língua. O pagamento podia ser parcelado e ainda tinha desconto. Só um detalhe, coisa sem importância: como eu era menor de idade, minha avó precisava assinar um termo de responsabilidade.

   Fui obrigada a confessar que só tinha entrado para dar uma olhada, quem sabe um dia eu me animava? Saí andando em direção à porta, mas dessa vez vó Nina não me seguiu. Sem perguntar o preço, ela examinou o barbell na palma da mão e avisou que queria a joia.

   A loura tirou da gaveta duas vias do termo de responsabilidade e pediu à minha avó pra preencher meu nome completo e dar um autógrafo onde se lia "assinatura do pai ou responsável". Mas vó Nina se irritou com a burocracia: "Não é preciso assinar nada. Quem vai botar o piercing sou eu! ".

   Aquilo era o quê, uma piada? A loura ficou me olhando, à espera da minha reação, mas eu estava chocada e não sabia o que dizer. O homem das cavernas suspendeu as sobrancelhas, fazendo o piercing sumir sob as rugas da testa. Depois de recolher os instrumentos cirúrgicos, ele enfiou o arsenal dentro da estufa e inventou que tinha de sair para aplicar uma tatuagem em domicílio. Vó Nina percebeu que estava sendo tapeada: "Não tem problema, amanhã eu volto. Ou você preferir ir lá em casa? ".

   Em vez de arranjar outra desculpa, o piercer resolveu abrir o jogo: fazia ano que trabalhava no ramo e nunca tinha acontecido um incidente grave – até o maldito dia em que um senhor entrou no estúdio e, para agradar o neto, concordou botar um brinco na orelha. O sujeito sofria sem problemas circulatórios e não tomou os cuidados necessários para o sucesso de cicatrização. Resultado: a orelha infeccionou e teve de ser parcialmente amputada. Do hospital, ele seguiu para o fórum, ingressou com um processo por danos morais e pediu o fechamento do estúdio. O réu ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­foi absolvido, mas gastou uma decisão radical: cliente com mais de 60, nem pensar!

   Foi inútil vó Nina esticar o dedo e acusar o homem das cavernas de autoritário, preconceituoso e insensível. Ela ameaçou recorrer ao Procon e saiu do estúdio resmungando que aquele primata não podia lhe negar atendimento.

   A raiva não atrapalhou o apetite da minha avó. Quando chegamos à praça de alimentação, eu perguntei por que tanta insistência em pendurar uma barbell na sobrancelha. Vó Nina me disse que não estava morta e, de acordo com a previsão de Salete, ainda tinha muita aventura pela frente. A mistura de cabelo vermelho e piercing pode não ser muito comum na terceira idade, mas talvez parecesse atraente aos olhos de um garoto apaixonado

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