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Pra não deixar a minha avó sozinha, faço as tarefas da escola no quarto dela. Ontem à noite, por exemplo, fui até lá com intenção de enfrentar a Guerra dos Cem anos: depois de zerar o trabalho sobre Joana d'Arc, precisava faturar na prova pra não ficar abaixo da média. E quem disse que consegui estudar? Assim que abri o estojo, um escorpião pulou lá de dentro e caiu bem em cima do meu colo.

Pular é modo de dizer: o escorpião era de plástico. Mas o susto, a tremedeira e a taquicardia foram bastante reias. Uma risadinha familiar me fez olhar pra trás - lá estava o meu irmão, na porta do quarto, se deleitando com o meu pânico.

Xinguei Xandi com tanta ira que alguns vizinhos apareceram na janela. E olha que eu estva disputando ibope com a novela das oito! Minha mãe entrou no quarto perguntando qual o motivo da gritaria - por acaso eu tinha ficado louca ou queria matar a minha avó do coração? Respondi que o maluco daquela casa era o meu irmão: ele tinha enfiado um escorpião no meu estojo.

Xandi se defendeu me atacando. Reclamou que eu não ligava pra ele e só queria saber de fofocar no telefone com as amigas e ficar escrevendo abobrinhas. Minha mãe não engoliu essa conversa mole: "É verdade, Alexandre, a história do escorpião?"

Toda vez que é chamado de Alexandre, meu irmão já sabe que vem bombardeio. A gente não tem costume de apanhar, mas minha mãe estava com tanta raiva acumulada (do marido, da rotina, do governo, da vida) que nem ouviu o Xandi dizer que o escorpião era de plástico. Agarrou o moleque pela orelha e foi torcendo e puxando. Só não provocou uma tragédia porque meu pai resolveu passar em casa antes de ir para o consultório.

Ele ficou horrorizado quando entrou na sala: "O que é que você tá fazendo, Sônia?". A resposta foi quase um eco: "Eu é que te pergunto, Nélson. O que você veio fazer aqui?".

Livre do beliscão, Xandi se escondeu atrás da cortina. Meu pai contou qu queria ver as crianças e também buscar o resto das roupas. Poderia ter respondido que sentia saudade de casa ou da família, ou dizer apenas saudade e omitir o complemento nominal. Mas fez questão de esclarecer que estava ali exclusivamente por causa dos filhos: a minha mãe (e, pelo visto, também a minha avó) não cabia na saudade dele.

Fazia apenas três dias que meu pai não aparecia em casa. Mas foram dias compridos, que duraram quase três anos. Ele não deixou de ligar, sempre à tarde, quando a minha mãe saía pra dar aula. Só que isso não matava a saudade. Aliás, eu acho que o telefone é a pior criação tecnologia. Graham Bell pode ter sido um gênio, mas o que ele inventou foi uma droga. E não estou falando em sentido figurado, não. Droga mesmo, como maconha ou cocaína. A voz do outro lado traz alívio e deixa a gente anestesiada, com uma sensação bem-estar que acaba causando dependência. Logo depois de desligar, vem a famosa síndrome abstinência, a incontrolável fissura pra ligar pra vez e falar até a orelha ficar vermelha e inchada como a do Xandi.

Meu pai perguntou qual o motivo daquele beliscão. Pensei que meu irmão seria degolado quando minha mãe contasse que ele tinha escondido um escorpião de plástico no meu estojo. Mas Xandi escapou sem um arranhão.
Foi pra minha mãe que meu pai se virou: "E por que é que você não conversou com o seu filho? Precisava arrancar a orelha?". Os dois começaram a se acusar e só não se pegaram porque vó Nina engasgou, perdeu o fôlego e teve um daqueles ataques de tosse que só passam com a ajuda da família inteira: meu pai batendo nas costas da sogra, minha mãe tentando ligar para o médico, meu irmão abrindo a janela e eu indo até a cozinha pra buscar um copo de água com açúcar.

Meu pai seguiu para o quarto assim que vó Nina voltou a respirar. Pela quantidade de roupa que enfiava na mala, parecia mesmo decidido a ir embora de vez. Mas pra onde? Ele disse que, provisoriamente, tinha se instalado num hotel no centro da cidade.

Xandi queria saber o que significava provisoriamente. Depois de algum tempo escolhendo as palavras certas, meu pai explicou que uma coisa é provisória quando ainda não está totalmente resolvida - como o rascunho de um desenho que a gente ainda pode mudar. Meu irmão se encheu de esperança: "Quer dizer que você pode voltar para casa?".

A pergunta ficou sem resposta. Minha mãe não demorou a entrar no quarto. Abriu um tubo de pomada e lambuzou a orelha do Xandi. Foi a maneira que encontrou de pedir desculpas ao filho, que retribuiu o gesto com um sorriso. De cabeça baixa, ela contou que tinha feito bolo de cenoura e chamou meu pai para lanchar com a gente. Ele disse que precisava voltar ao consultório, mas não resistiu à insistência dos filhos nem ao perfume do bolo. Fomos para a sala e, por alguns minutos, comemos, rimos e comentamos a novela como uma família feliz.

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