Cinderela da...2

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   São apenas três dias na praia, mas minha mãe enfiou o guarda-roupa inteiro na mala - e reservou uma bolsa só pra calcinhas, sutiãs, camisolas, perfumes, desodorantes, xampus, condicionadores, hidratantes, esfoliantes e outros acessórios indispensáveis pra tornar a segunda lua-de-mel ainda melhor que a primeira. O voo estava marcado para às duas da tarde, por isso eles levaram o Xandi ao colégio e de lá seguiram para o aeroporto. Antes de sair de casa, fizeram a vó Nina prometer e jurar que agiria como sargento de filme americano e não deixaria a gente dormir tarde, comer biscoito no sofá, beber água no gargalo, ficar no gargalo, ficar debruçado na janela, abrir lata de leite condensado, patinar de meia no assoalho, passar o dia no telefone e a madrugada na Internet. Meu pai fez uma listinha e pendurou no bico do pinguim que fica grudado na porta da geladeira: telefone do hotel em Porto Seguro, do síndico do prédio, da diretoria da escola, do consultório do pediatra, por acaso eles não sabem que existe um médico chamado hebiatra, especialista em cuidar de adolescente? Xandi não perdeu a piada: "Pensei que fosse o veterinário!". Quando respondi que a conversa não tinha chegado ao berço, ele abriu o bocão e gritou que não era neném.

   Minha mãe resolve esse tipo de discussão com o seu velho discurso sobre a importância da união da família, não há nada mais precioso do mundo, quanto filho único existe por aí que daria tudo pra ganhar um irmão! Meu pai tem menos paciência: em vez de desperdiçar psicologia e saliva, ele costuma botar Xandi e eu no meio da sala, meia hora abraçados pra aprendermos a conviver como pessoas civilizadas.

   O problema é que a civilização leva tempo. Meu pai estava com pressa e, dessa vez, abrandou a pena do abraço pra um aperto de mão.

   A sim que ficamos a sós, minha avó me pediu mais tolerância com o Xandi, afinal de contas eu sou mais velha e ele não passa de uma criança. Pensei com o meu zíper: a senhora não perde uma chance de puxar o saco do netinho, hein!, mas engoli o protesto e até me ofereci pra dar uma força quando vó Nina foi lavar os pratos. Só impus uma condição: a gente passaria a tarde zanzando pelo shopping, combinado?

   Contei que tinha sido convidada pra uma festa na casa da Leninha, os pais dela estavam comemorando 15 anos de casamento e eu não sabia o que dar de presente. Vó Nina sugeriu um buquê de rosas, mas eu rosnei que o dono da festa não merecia flores, quando muito uma planta carnívora ou então um cacto pra espetar a mão boba e passar um bom tempo sem poder tocar na amante. Pra justificar a minha fúria feminista, resumi o que tinha acontecido no Terraço e confessei que só iria a essa festa por causa da Leninha. E, é claro, do Guto.

   Logo após a faxina na cozinha, troquei o uniforme pela dupla jeans & camiseta e saí pela rua de braço dado coma minha avó. Seguimos a pé até o shopping e aproveitamos a caminhada pra botar a conversa em dia. Falei que Guto já estava  bem melhor da gripe e, se dependesse de mim, na noite da festa a gente iria ficar. Vó Nina coçou a cabeça: "Ficar onde?".

   Tive algum trabalho pra explicar que não era onde nem como, mas com quem: ficar era uma espécie de namoro aberto e relâmpago, que normalmente durava uma noite e dava direito a beijo de língua, coma vantagem de que o cara não precisava telefonar no dia seguinte nem ter um ataque de ciúme se visse a garota com outro, afinal não  havia compromisso. E vice-versa.

   Minha avó disse que beijo de língua, no tempo dela, se chamava beijo de cinema. Não me contive: "Como assim, no seu tempo? Por acaso a senhora já morreu?". Ela riu da minha bronca e contou que antigamente não existia esse negócio de ficar: as garotas flertavam, namoravam, noivavam, casavam e engravidavam, nessa ordem. E aí da apressadinha  que pulasse um degrau!

   Nunca tinha ouvido a palavra flertar... será que ainda existe no dicionário? Sem encontrar uma boa tradução, ela me disse que flertar era um pouco parecido com ficar, só que sem beijo. Eu cruzei os braços: "E qual a graça?". Vó Nina lembrou que quando era adolescente não havia computador nem DVD nem celular nem restaurante por quilo, o passado girava lentamente e as pessoas tinham mais tempo livre, inclusive pra namorar. Os rapazes eram obrigados a ter muita paciência e levavam semanas ou até meses pra deslocar o primeiro beijo. E nada de boca aberta, onde já se viu? Se o engraçadinho se atrevesse, a garota tinha todo o direito de lhe dar na cara um tapa de cinema - mesmo que não estivesse num daqueles dias.

   Mais uma vez precisei de tradução. Minha avó me ensinou que a expressão " um daqueles dias" corresponde ao período em que a mulher vira um campo minado e pode explodir a qualquer momento, por qualquer pretexto, até um olá mal interpretado vira ofensa pessoal. Atualmente a gente diz TPM, mas nesse tempo a sigla não existia, e  o M era censurado pra menores de 18. Muitas garotas pensavam que menstruação tinha alguma coisa a ver com monstro e preferiam dizer "regras". Assim mesmo, entre aspas. E com a porta fechada.

   O tabu atinge os dois sexos, mas entre os homens virou mito. Até hoje, são raros os machões que entram na farmácia de cabeça erguida pra comprar um pacote de absorventes. Esse tipo de pudor, segundo vó Nina, não afligia o seu marido: vô Plínio não apenas aceitava a encomenda, como mandava o balconista embrulhar pra presente.

   Por um momento, ela baixou os olhos e ficou sentindo saudade em silêncio. Talvez fosse hora de mudar de assunto, mas eu estava pinicando de curiosidade e pedi licença pra fazer uma pergunta... indiscreta. Vó Nina consentiu com um a-hã intrigado. Não criei metáfora nem fiz rodeio: "Eu queria saber, vó, como é que foi a sua primeira vez".

   Minha avó levou quase um quarteirão pra se refazer do susto, engolir a gagueira e revelar que só dormiu com o vô Plínio na noite de núpcias, essa era a norma. Não consegui conter o riso e expliquei que não estava falando disso, longe de mim ser tão indiscreta, eu só queria saber sobre a primeira vez em que tinha menstruado.

   O mal-entendido deixou vó Nina com as bochechas da cor dos cabelos. Ela me disse que, sinceramente, nem se lembrava direito. Deve ter sido lá pelos 12 ou 13 anos, por aí.

   Como é que alguém pode esquecer uma data tão fundamental? Vó Nina notou o meu espanto e me perguntou, a propósito, como tinha sido a minha primeira vez. Dei um suspiro de desânimo que levantou a poeira da calçada: "Ainda não foi. E, pelo jeito, nem vai ser. Já estou com 13, quase 14, e até agora nada. Acho que nunca vou ter um gostinho de sentir uma crise de TPM".

   Finalmente chegamos ao shopping e passamos na frente de uma livraria; a vitrine, por coincidência, exibia um tijolo de filosofia oriental sobre as virtudes da paciência. Quando vó Nina me mostrou o livro, eu disse que meus hormônios andavam muito estressados  e provavelmente não conseguiriam relaxar com esse tipo de leitura. Mesmos assim atravessamos a porta de vidro e fomos até a seção de auto-ajuda. Talvez eu achasse algum presente para os pais da Leninha.

   Uma olhada panorâmica pelas estantes me fez sentir numa farmácia: de desemprego a depressão, havia livros pra todos os males. E a maioria tratava de crise conjugal: Seu casamento ainda tem cura. Faça da sua mulher uma amante. Como chegar às bodas de prata sem enlouquecer. Por que os homens são como são e não como a gente gostaria que eles fossem?. Folheei algumas dessas obras-primas e concluí que o pai da Leninha precisava de algo mais forte. Não sei se ela gosta de versos, mas mesmo assim perguntei ao vendedor onde ficava a seção de poesia.

   Seção? O cara balançou a cabeça e apontou para os fundos da livraria.

   Senti um aperto no coração ao ver os modernistas brasileiros espremidos numa única prateleira. Depois de destruir algumas teias de aranha, soprei o pó do Manuel Bandeira, desamassei a orelha do Drummond e virei o Murilo Mendes de cabeça pra cima. Não tenho paciência de ler índice e abri uma antologia do Vinicius ao acaso. Quando descobri que tinha acertado a página do Soneto da Fidelidade, pedi ao vendedor pra embrulhar aquele presente infinito.


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