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Sigilo profissional é coisa sagrada. Imagine se o meu pai saísse do consultório contando aos amigos que este ou aquele cliente não escova os dentes ou usa dentadura ou tem mau hálito. Ou se um padre revelasse para a igreja lotada, bem na hora do sermão, que, embora o prefeito colabore com o dízimo e comungue todos os domingos, trai a mulher com a empregada e tarde da noite vai para a janela espionar com o binóculo a vizinha. Acho que todos os profissionais, sem exceção, têm obrigação de guardar segredo sobre o que ouvem em seus consultórios, confessionários, escritórios, repartições públicas..e salas de aula.

Com que direito um professor (mesmo que seja um deus grego) mostra à diretora o trabalho de uma aluna só porque ela resolveu ignorar os livros e inventar a sua própria história? Eis a pergunta que eu gostaria de fazer a dona Nélia quando ela me tirou da sala de aula e me levou ao gabinete pra uma "conversa séria" sobre a minha redação.

A diretora da escola é uma solteirona de cabelo lambido e óculos de tartaruga que deslizam pelo nariz comprido e ficam encalhados bem na ponta, graças a uma verruga estratégica. No fundo, dona Nélia é boa gente, fala com os alunos de igual pra igual e costuma trabalhar com a porta aberta - pra que ninguém precise bater antes de entrar. Mas estudante não perdoa nada, muito menos uma verruga no nariz. Resultado: ela ganhou o apelido de bruxa.

Pelo seu olhar inquisidor, suspeitei que eu seria acusada de herege e condenada à fogueira da expulsão. Ou bastaria uma suspensão pra que eu aprendesse a não confudir História com história? Já estava pronta a explicar que Joana d'Arc - a minha Joana d'Arc - era uma personagem de ficção, fiel apenas aos caprichos da minha imaginação imprevisível. Mas a explicação morreu na garganta. Quando pus os pés no gabinete, tudo o que consegui balbuciar, quase sem voz, foi uma úmida pergunta: " Mãe! Pai! O que é que vocês estão fazendo por aqui?".

Quem respondeu foi a bruxa. Ela sentou na sua cadeira de veludo, por trás de uma mesa de ferro escura e redonda como um caldeirão, e me informou que tinha mostrado aos meus pais a redação sobre Joana d'Arc. Resolvi bancar a inocente: "Por quê? A senhora não gostou?".

Dona Nélia sorriu, coçou a verruga com a tampa da caneta e admitiu que o texto estava bem elaborado, tinha coerência e coesão e, fora duas ou três vírgulas perdidas, não apresentava nenhum erro de gramática. O problema era o conteúdo. Onde é que eu estava com a cabeça pra escrever que Joana d'Arc foi salva da fogueira por um soldado apaixonado?

Levantei o dedo e esclareci que Louis-Auguste era mais que um soldado, ele também trabalhou como médico, conselheiro e secretário particular da heroína. Minha mãe não se conteve: "Que idéia é essa, menina?" Eu dou aula de História há mais de dez anos, fiz a minha tese de doutorado sobre Joana d'Arc e nimca ouvi falar de Louis-Auguste nenhum". A diretora tentou se meter, mas minha mãe ainda não tinha terminado: "Eu aposto, Joana, que você fez esse texto pra me provocar".

A redação estava nas mãos de meu pai. Ele ficou um tempão de cabeça baixa, leu e releu a minha obra e fez uma crítica favorável: "Sinceramente, eu não vejo nada de grave no que a Dalvinha escreveu. Ela pode ter contrariado a história oficial, mas pelo menos foi criativa e demonstrou originalidade".

Pensei que a minha mãe ia se ofender e usar o gabinete como ringue pra mais um round da sua guerra conjugal. Nada disso. Pra minha surpresa, ela contou para a diretora que a nossa família estava passando por um problema muito delicado e que não era hora nem lugar pra discutir com o seu... Será que ia dizer marido? Ou ex-marido? Na dúvida, deixou escapar um pigarro e antecipou o ponto final: " Não é hora nem lugar pra discutir".

Dona Nélia concordou prontamente, empurrou os óculos nariz acima e, afinal, revelou o que esperava de mim: " O professor Paulo acredita que esta redação só teria sentido na aula de Literatura, mas, como trabalho de História, não passa uma brincadeira de mau gosto e por isso deu zero para a sua equipe. Você sempre foi boa aluna, Joana Dalva, e não costuma tirar notas abaixo da média. Por isso, convenci o professor Paulo a lhe dar uma segunda chance".

Pra melhorar a minha nota, o mais simples seria colocar o 1 frente do 0. Mas não era essa a proposta: a bruxa queria que eu renegasse a minha versão sobre Joana d'Arc e redigisse uma nova redação, traçando o retrato sem sal de uma adolescente careta e assexuada que nunca teve espinhas nem se revoltou quando foi condenada à fogueira. Se eu topasse, a minha equipe seria absolvida do zero.

"E então, minha filha, estamos combinadas?"

Quem me fez essa pergunta foi dona Nélia. Ao ser chamada de filha pela diretora da escola, fiquei pensando como seria complicado ter duas mães e soltei uma risada que a bruxa interpretou como sim. Mas logo tratei de desfazer o engano: "Não vou escrever outro texto só pra agradar ao Apolo. Quer dizer, ao Paulo". Ela vez um último apelo pra que eu mudasse de idéia - pelo bem das minhas colegas, que tinham sido prejudicadas pela minha redação. Não aceitei a chantagem emocional: Danyelle e Leninha só eram responsáveis pela primeira parte do trabalho e não tinham nada a ver com o meu texto. O que o professor deveria fazer era dar uma nota separada para as duas.

Minha mãe e a trocaram um olhar impotente. O que fazer, meu Deus, quando o bom senso e a voz da experiência não mudam a cabeça dura de uma garota de 13 anos? Dessa vez nem meu pai me deu apoio. Ele achava a minha prosa muito criativa e divertida, mas me aconselhou a criar juízo e deixar a literatura pra outra hora. O que é que me custava, afinal de contas, fazer uma nova redação?

Eu disse que não iria mexer na minha história por uma razão muito simples: tudo aquilo que Joana d'Arc era esperta o bastante pra enganar os juízes da Inquisição e, com um pouco de sorte, escapar da prisão e da fogueira e voltar ao comando do exército francês, conduzindo seu povo à vitória na Guerra dos Cem Anos. Quando dona Nélia me perguntou de onde eu tinha tirado essa idéia, fui obrigada a falar em "intuição feminina". Não era um argumento muito convincente, mas pelo menos serviu pra encerrar a reunião.

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