RF 1

153 7 1
                                    

Em silêncio, sou veloz na leitura: se a história me agrada, os olhos engatam uma palavra na outra e disparam pelas linhas como um trem-bala desgovernado. Meu problema é ler em voz alta, principalmente quando tenho platéia. Essa fobia provoca uma mistura de gagueira com tosse que não me deixa ir além do primeiro parágrafo. Também sofro de falta de ar, e uma leve tontura embaralha as letras, sem falar no repentino mau humor e no coração querendo sair pela garganta. Foi tudo isso que experimentei (uma espécie de TPM sem M) no dia em que o Apolo entrou na sala e anunciou que os trabalhos deveriam ser lidos em voz alta.
Desgraçada pouco é bobagem: o primeiro grupo sorteado foi o meu. Senti um pouco de alívio quando Danyelle puxou os papéis da minha carteira, caminhou até a mesa do professor e começou a contar a vida heroína francesa. Mas, pra minha decepção, ela só leu o que tinha escrito - ou melhor, o que tinha colado da Internet. Percebendo a minha ansiedade, a sádica deixou por minha conta a última parte do trabalho.
Pensei em dizer que serei (sou?) escritora e criei a minha própria Joana d'Arc, uma personagem que não podia não ser política e historicamente correta, mas pelo menos não era uma cópia virtual de textos e idéias alheias. É claro que não falei nada disso. Cuspir fogo sobre Danyelle poderia deixar minha alma mais leve, mas concluí que o papel de dragão não me traria a serenidade zen de que eu precisava pra ler a minha redação.
De repente, decidi que não daria a Danyelle o gostinho de me ver em pânico: respirei fundo, três vezes, e, de olhos fechados, ordenei às mãos que parassem de tremer, ao coração que se alcamasse, à garganta que engolisse o pigarro. E não é que deu resultado? O corpo, pra minha surpresa, obedeceu sem discutir. Fiquei tão tranquila e relaxada que quase deixei escapar um bocejo.
Levantei-me da carteira sem pressa, fui até a frente da sala e olhei os meus colegas nos olhos, esticando o suspense pra contar a minha versão sobre a padroeira da França. Eu me sentia a Fátima da Glória apresentando as manchetes do jornal mais famoso do país. Sem tropeçar numa única sílaba, comecei dizendo que o cabelo curto e a farda faziam Joana d'Arc ser confundida com um dos soldados do seu exército. Mas como ela era no dia-a-dia, quando tirava o capacete e a armadura, descia do cavalo e se espreguiçava?
Muitas acharam graça da minha dúvida - se Joana d'Arc tomava banho de rio ou se mergulhava numa tina dentro da cabana. É pena que o sorriso do professor (que dentes!) tenha durado tão pouco. Quando Louis-Auguste entrou na história, Apolo coçou o queixo e levantou as sobrancelhas, fatiando a testa em rugas paralelas. E mesmo assim continuava lindo! Na verdade, parecia ainda mais charmoso com as narinas dilatadas e aquele olhar de cólera contida.
Apesar da beleza do professor e do burburinho do colegas, voltei a me concentrar na redação e continuei a leitura até o ponto em que Joana d'Arc sai da prisão disfarçada de monge, deixando Louis-Auguste em seu lugar.
Mas fui interrompida por um tapa na mesa que quase me fez largar o papel. Apolo deu um pulo da cadeira e, com os braços abertos, perguntou que brincadeira era aquela. Não tive chance de explicar que a minha história era ficção. Ele disse que estava ali para ensinar História, não Literatura, e jamais iria permitir que uma aluna cometesse a heresia de confundir um vulto histórico, aliás, uma santa, padroeira de um país, de um dos principais países do mundo, com uma personagem sem nenhum compromisso com a realidade.
Só me restava enfiar a coleira do zero no pescoço e voltar à carteira com o rabinho entre as pernas - daí a minha surpresa quando o professor cruzou os braços e me mandou prosseguir. Achei que ele quisesse fazer terrorismo, aproveitando os risinhos da turma pra debochar da minha história. Mas mesmo assim fui em frente.
Já não sentia, é bem verdade, a mesma segurança da Fátima da Glória. Com o coração outra vez acelerado e a voz tremendo no ritmo das mãos, contei que Joana d'Arc tinha se escondido debaixo do capuz e seguido assim até a praça de Rouen, onde a lenha já estava pronta para a execução da sentença. Políticos, clérigos, juízes, nobres, enfim, todas as digníssimas autiridades e seus respectivos pixa-sacos faziam pose, à espera da principal convidada da festa. Pra não ser espremida, Joana subiu numa árvore e assistiu ao espetáculo a distância.
Louis-Auguste tinha garantido que, com a ajuda de soldados ingleses, ele também escaparia da prisão e mandaria para a fogueira um boneco de pano. Mas o plano não dru certo. Quando o rapaz apareceu na esquina, tapando o rosto com as mãos pra não ser identificado, Joana desceu da árvore e começou a berrar que aquilo não era justo, que eles estavam condenando um inocente, que a verdadeira bruxa era ela. Pra provar suas palavras, tirou o capuz e exibiu o rosto.
Apolo mantinha a testa enrugada, mas dava pra perceber que se esforçava pra ficar sério. A classe, em compensação, tinha virado um trio elétrico. Até a Leninha, que era da minha equipe, não conseguiu segurar o riso. Mas o que mais me doeu foi olhar para o Guto: uma boca tão linda, os lábios tão sedosos, a língua com certeza tão morna e macia... Ele podia usar todos esses ingredientes pra me mandar um beijo de apoio, mas preferiu imitar os colegas e se divertir à minha custa.
Nem por isso parei de ler. Por mais que Joana se descabelasse, quem seria maluco de tirar os olhos da fogueira pra assitir ao ataque de nervos de uma garota histérica? Ninguém prestou atenção ao seu protesto e muito menos ao veredicto do tribunal eclesiástico. Depois de chamar a acusada de feiticeira, pseudoprofeta, invocadora de maus espíritos, conspiradora, extraviada, sacrílega, idólatra, execrável, maligna e ávida de sangue, o sacerdote encarregado de ler a sentença pediu a Deus que tivesse misericórdia daquela alma perdida e fez um sinal para o carrasco.
Louis-Auguste ficou o tempo todo de cabeça baixa, com medo de ser desmascarado pelos juízes do Santo Ofício, e chegou a sentir alívio quando finalmente foi amarrado à estaca e viu a fumaça cobrindo o seu rosto. Cansada de espernear, Joana pediu a Jesus que poupasse o amigo da agonia e recebeu essa graça: a alma do rapaz tomou a forma de fagulha e se desprendeu da fogueira, subindo ao céu com a velocidade de uma estrela cadente ao contrário. A garota passou o resto do dia perambulando pela cidade e, no meio da madrugada, voltou à praça deserta, recolheu as cinzas do chão e encheu os bolsos do hábito.
Faltava ainda o último parágrafo, no qual eu explicava que Louis-Auguste não se sacrificara em vão: ao saber que Joana d'Arc tinha escapado da fogueira, o rei Carlos VII confiou-lhe o comando geral do exército, a França derrotou a Inglaterra e pôs fim à Guerra dos Cem Anos. Mas Apolo não me deixou terminar. Quando a minha heroína guardou as cinzas no bolso, o professor de História gritou "já chega" e anunciou a sentença do meu grupo: zero!
Danyelle tratou de se defender, alegando que só tinha feito a primeira parte do trabalho e não queria ficar com nots vermelha por minha causa, era só o que faltava! Fiquei tentanda a falar que fizemos tudo em equipe, do começo ao fim, mas não achava justo prejudicar a Leninha, então assumi sozinha a autoria da redação.
Apolo não quis nem saber: zero para as três e assunto encerrado!

PoderosaOnde histórias criam vida. Descubra agora