A Borboleta que...5

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   Salete deixou cair o alicate de unha quando a gente entrou no salão: "Quem surpresa, dona Nina! Mas a senhora não estava...". Foi a própria vó Nina quem preencheu as reticências: "Morta, minha filha. Eu estava praticamente morta. Mas ontem de manhã resolvi ressuscitar". As duas se abraçaram com escândalo e trocaram beijos e saudades. Salete achava aquela notícia merecia um tintim e levantou a xícara. Minha avó aprovou a idéia de brindar com café, mas disse que queria emagrecer e pediu umas gotinhas de adoçante. Uma mulher cheia de rolinhos se meteu na conversa e faliu que vó Nina não precisava de dieta nenhuma, imagina, quem lhe dera virar avó  com aquele corpo de menina! Outra freguesa confessou que já tinha experimentado de tudo pra acabar com a flacidez das coxas, mas nenhum creme nem lipo nem musculação deu resultado. O que é que a minha avó recomendava?

   Vó Nina disse que elas estavam exagerando: como é que uma mulher com cabelos brancos, sobrancelha grossa, pele seca e cutículas selvagens podia se dar ao luxo de distribuir dicas e conselhos de beleza? Mas as clientes achavam que ela escondia o jogo e continuaram implorando a receita da eterna juventude - ou, pelo menos, o nome do cirurgião plástico.

   Depois de jurar que comia de tudo e não praticava nenhum tipo de ginástica, nem mesmo caminhada, vó Nina sentou no sofá  e começou a mexer numa cesta de vime entulhada de revistas de fofoca. Encontrou um Catálogo de cores para os seus cabelos, folheou pra lá e pra cá e disse que estava em dúvida entre o castanho-fosco e o sépia sutil. Qual dos dois seria mais adequado pra uma jovem senhora da terceira idade?

   Salete declarou que catálogo de cores é ótimo pra quem quer pintar parede, mas os cabelos têm vida e raiz e não podem ser tratados como objetos. Se a quiromancia desvenda o futuro, por que não serviria pra ajudar clientes indecisas a escolher a cor dos cabelos ou o penteado mais adequado à personalidade?

   A análise da mão da vó Nina foi rápida e levou a um inesperado diagnóstico: ela deveria pintar os cabelos com uma cor forte e quente. De preferência, o vermelho.

   Uma freguesa achou que tinha ouvido mal e pediu à cabeleireira pra desligar o secador. Vó Nina admitiu que sempre teve vontade de experimentar um corte mais moderno e uma cor mais viva, mas nunca pensou no vermelho, onde já se viu? Ainda mais na idade dela! Salete lembrou que aquela era a cor da paixão. E na mão da minha avó estava escrito, com todas as linhas, pra quem quisesse  (ou soubesse) ler, que em breve viveria um paixão vermelha, vermelhíssima. Essa seria a cor ideal para os cabelos e as unhas. Sem falar, é claro, no batom.

   Os outros secadores foram se calando, um após o outro, até que o salão inteiro fez silêncio. Percebendo que ninguém acreditava na sua previsão, Salete tirou do bolso do jaleco uma lixa de unha e apontou para a palma da mão da vó Nina: "Está aqui é a linha da vida. Ela vai ficando fininha, olha só, e quase se apaga. É o tempo que a senhora passou de cama, sem vontade de viver nem coragem de morrer. Mas de repente a linha reaparece com força de uma cicatriz e se enrosca nesta outra, que é a linha do amor, e também nesta aqui, a linha da razão se formando um nó que nem o diabo seria capaz de desatar".

   O silêncio foi quebrado por um latido que parecia vir do quintal. Salete olhou mais de perto para o tal nó e anunciou sem hesitar: "Eu também vejo, dona Nina, que a outra metade dessa paixão é uma pessoa mais nova. Aliás, bem mais nova!".

   É claro que vó Nina não estava levando a sério aquele papo, mas mesmo assim perguntou, só por curiosidade, qual a diferença entre idade entre ela e o seu futuro namorado. Salete apalpou a mão da minha avó e falou em cinco, talvez seis, seria difícil fazer um prognóstico exato. Quando alguém comentou que meia dúzia de anos não era muita coisa, a dona do salão explicou que não estava falando em anos. A diferença era de mais de cinco décadas!

   Todo mundo confia nas previsões da Salete, mas não dá pra imaginar vó Nina com o cabelo curto e vermelho, aos beijos e abraços com um garoto que poderia ser seu neto. As freguesas achavam aquela história um absurdo, uma loucura,  uma delícia, uma piada, um escândalo, enfim, as opiniões se dividiram. Minha avó se abanava com o catálogo e me olhava à espera de socorro. Eu disse que a mulherada estava era morrendo de inveja. Ela queria mudar de visual, não queria? Pois então que aceitasse a sugestão da Salete e apostasse no vermelho.

   Vó Nina trocou uma idéia com o espelho e concluiu que, pensando bem, não tinha mais idade pra se preocupar com a língua alheia.

   A decisão provocou aplausos e vivas - até as freguesas mais conservadoras reconheceram a coragem da minha avó de ignorar o possível (provável) ridículo. Ela vestiu um avental comprido e se recostou na cadeira, fechando os olhos quando a cabeleireira deu início à massagem com xampu.

   Salete me levou pra um canto e me perguntou, baixinho, se eu já estava exercendo o meu poder. Fiquei um pouco indecisa, sem saber se podia me abrir. Ela pôs a mão no meu ombro e baixou ainda mais a voz: "Foi você que curou a sua avó, não foi?".

   Não sei ler as linhas da mão,  mas de olho eu entendo bem, e os olhos da Salete eram fundos o bastante pra guardar o meu segredo. Confirmei com a cabeça e contei que as minhas palavras tinham vida: à noite, rabisquei um bilhete, dizendo que vó Nina iria se curar e, no dia seguinte, ela estava de pé.

   Aquela, na opinião de Salete, era a verdadeira literatura de auto-ajuda!

   A gente queria continuar conversando, mas o papo foi interrompido por uma dondoca que exigia exclusividade: "As minhas unhas são como filhas. E só a dona deste salão tem permissão pra cuidar...". O resto não deu pra ouvir direito, por causa do festival de latidos. Salete me falou que não tinha mais sossego: desde que o seu ex-marido invadiu a casa, Júnior só cuidava de adestrar o cachorro. Acontece que Frederico não era muito obediente e disparava a latir quando recebia ordem de atacar. Ela estava com um mau pressentimento e me pediu pra falar com o garoto. Quem sabe eu convencia o teimoso de que cachorro não é revólver?

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