A Borboleta que virou Largata

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Minha avó me disse que tinha acordado logo depois que saí para a escola. Bem disposta e faminta, espreguiçou-se até estalar os ossos e sentou na beira da cama. Só então percebeu que estava viva e tinha outra vez o controle do corpo. Levantou-se sem preguiça nem tonteira e caminhou até o banheiro assobiando. O espelho lhe deu um susto: as pálpebras caíam sobre os olhos, as sobrancelhas pediam uma boa poda e o cabelo branco deixava as olheiras ainda mais escuras. Pensou em ligar para o salão da Salete, mas deixou a vaidade pra outra hora; antes de cuidar da aparência, queria matar a saudade de um café à moda antiga, feito com coador de pano. Ultimamente só usava os braços pra descascar a tinta da parede, por isso sentiu-se um pouco insegura ao tirar do fogão a caneca com água fervendo. Mas não derramou nenhuma gota fora da garrafa térmica e ainda se deu ao luxo de segurar o copo sem tremer.

   Depois de contar que passou a manhã fazendo faxina no seu quarto, vó Nina reclamou do cheiro de queimado, amarrou um avental na cintura e prometeu que iria preparar um almoço rápido e decente. Xandi também seguiu para a cozinha e se ofereceu pra ajudar: já sabia, por exemplo, riscar o fósforo. Minha mãe achava que a cura da vó Nina era um milagre de Joana d'Arc; de mão dada com o meu pai, rezou um Ave-Maria diante da imagem e agradeceu à santa por trazer a felicidade de volta ao nosso lar.

   Eu deveria ficar orgulhosa dos meus poderes literários, afinal minha avó estava recuperada graças à frase que escrevi na agenda dela. Mas eu não conseguia tirar o Guto da cabeça. Pra não estragar a felicidade da família, fui para o quarto, desabei na cama e abafe o o choro na mochila.

   Pouco depois, vó Nina bateu na porta e anunciou o cardápio: "Macarrão parafuso com molho de tomate e manjericão". Sou maluca e doida por  massa, ainda mais quando vem regada pelos molhos da minha avó. Ela sempre teve intimidade com o fogão e, antes de hibernar na doença, costumava criar uns temperos mágicos que nunca consegui imitar - nem mesmo seguindo passo a passo o seu caderno de receitas. Só de ouvir a palavra manjericão eu já começo a salivar,as naquela tarde a tristeza era maior que a fome. Falei que tinha perdido o apetite, mais tarde eu comeria qualquer coisa.

   Do quarto, ouvi minha mãe resmungar que eu parecia um palito, aos 13 anos ela já era uma moça; adolescente que não se alimenta acaba sofrendo de anorexia. Quando Xandi perguntou que bicho era esse, meu pai falou que existe uma doença, ou melhor, um transtorno alimentar que leva muitas garotas a sentir um medo mórbido de ganhar peso e por isso elas passam a comer cada vez me menos, aos poucos vão ficando fracas e anêmicas e podem até morrer. Meu irmão disse que tinha entendido tudo - ou quase tudo. O que queria dizer a palavra "transtorno"? E "mórbidos"? E "anêmicas"?

   Meu pai prometeu levar o garoto pra fazer uma excursão ao dicionário. Naquele momento, porém, não dava tempo: se Xandi não parasse de fazer perguntas, chegaria atrasado à escola. O tempero da vó Nina ganhou aplausos e elogios, mas todos estavam apressados e não houve tempo pra bis: minha mãe tinha aula na faculdade e pegou carona com o "benzinho".

   Mal esperei que eles fossem embora pra chamar a minha avó. Fazia um tempão que ela não entrava no meu quarto e parecia curiosa pra conhecer as novidades. Na verdade, não havia muitas mudanças: um cabide de madeira que eu tinha comprado num brechó; uma gravura de Van Gogh com um céu amarelo que mudava de tom e também de humor, dependendo do dia e da hora; uma tartaruga de feltro recheada com areia que não deixava a porta bater na parede; um quadro de metal com mil e uma fotos pregadas com ímãs coloridos.

   Tinha fotos de parentes, vizinhos, amigos, colegas de sala e até de umas figuras que encontrei por acaso na Internet e que acabaram virando amigos íntimos. Sonhava em pendurar no quadro um close do Guto sorrindo, mas a única imagem dele era um retrato meio fora de foco que saiu publicado no Olho Vivo: a turma inteira reunida no pátio, no dia da abertura dos jogos inter colegiais.

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