Andróide com...6

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   Minha mãe entrou no quarto apavorada e me perguntou o que eu fazia de bruços no chão. Eu deveria responder que estava catando conchinhas ou perseguindo uma largatixa ou consertando o estrado da cama, mas engolibo deboche e rosnei que tinha acabado de aterrissar de um pesadelo. Ela enxugou os olhos na camisola e me disse que eu era uma garota de sorte: meu sonho podia ter sido horrível, mas todos os monstros e fantasmas sumiam no instante em que eu acordava. No seu caso, ao contrário, o pesadelo começava assim que ela abria os olhos, olhava para o lado e via o travesseiro do meu pai vazio.

   Em vez de me ajudar a levantar, minha mãe sentou ao meu lado, no chão, e me implorou pra salvar o seu casamento: "Salete falou que você é poderosa. Na hora eu achei que fosse brincadeira, mas depois fiquei pensando que isso pode ser verdade. Ela ficou tão impressionada com as linhas da sua mão... Quem sabe você fala com o seu pai e convence aquele teimoso a voltar no pra casa".

   O despertador se meteu na conversa e me lembrou que era dia de prova. Promeri à minha mãe que daria um jeito, troquei de roupa e fui até o banheiro. Levei um susto ao olhar no espelho: bochecha amarrotada, olheiras de abismo e nem um fio de cabelo no lugar! Mas o pior efeito colateral do pesadelo apareceu na testa, bem no meio das sobrancelhas: uma espinha me fez sentir um perfeito rinoceronte. Cheguei bem perto do espelho; minha respiração embaçou o reflexo. Espremer ou não espremer, eis a questão! Essa dúvida existencial me fez perder uma década. Cutuquei a espinha com a unha, mas a dor me obrigou a mudar de tática. E se eu usasse, como camuflagem, um daqueles cremes milagrosos da minha mãe?

   Gastei quase meio pote e saí de casa atrasadíssima. O ônibus estava demorando então resolvi ir a pé para a escola. Maldita idéia! Suei bastante pra molhar a blusa, o creme escorreu pelo rosto e, com certeza, cavei ainda mais as olheiras. Foi com essa máscara de horror que encontrei o Guto, no portão da entrada, com um chiclete na boca e a apostila de História debaixo do braço.

   Virei o rosto para o outro lado, pra ver se escondia a espinha, mas Guto me chamou com um psiu irresistível. Olhou para o relógio de pulso e disse que faltava um minuto para bater o sinal, por pouco eu não perdi a prova de História. O hálito de chiclete - menta com canela - me deixou arrepiada! Falei que era melhor a gente se apressar, mas fui agarrada pelo braço e ouvi uma pergunta inesperada: "Você gosta de cinema?". Antes que eu pudesse respirar, ele me convidou pra assitir à estréia, no fim de semana, do mais recente episódio da sua série prefirida, O Andróide Exterminador III.

   Guto me garantiu que o filme era a maior adrenalina e me fez pensar no estranho destino de certas palavras. Adrenalina, por exemplo. Outro dia, abri o dicionário e li que adrenalina, substantivo feminino, é uma "substância incolor existente no organismo animal, onde tem importantes funções fisiológicas". Mas todos os garotos da escola acham que adrenalina é adjetivo, e usam e abusam dessa pobre palavra quando ficam empolgados com um filme de ação, uma final de campeonato e até cheeseburger com bastante maionese e ketchup.

   Sempre me sinto um pouco irritada (neurose de escritora?) toda vez que algum colega vem me contar que isso ou aquilo é pra adrenalina. O engraçado é que, na boca do Guto, essa gíria gasta e sem graça ganhou uma originalidade imprevista, um toque de poesia que eu não tinha reparado. E eu, é claro, aceitei o convite. Nunca fui muito ligada nesses bangue-bangues do futuro, com robôs que querem salvar o mundo e, pra isso, destroem cidades inteiras e assassinam quase todo o elenco. Não assiti aos dois primeiros episódios da série, mas jurei que era louca pelo Andróide Exterminador e combinei de encontrar o Guto no domingo, às seis, na porta do Cinze Veneza II.

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