Piercing...6

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Tirar ficção da cartola é uma delícia, mas não vejo a menor graça em fazer redação sob encomenda, com títulos pré-fabricados ("Minhas férias") ou os velhos temas de sempre (biografias de grandes vultos históricos). O que mais me encanta na literatura é a possibilidade de sair da estrada sem dar seta e criar atalhos inesperados, mudando o rumo da cena e derrubando o queixo do leitor. O problema é que às vezes a história já está pronta e documentada. Todo o mundo sabe que Joana acabou presa e vendida aos ingleses por um bispo corrupto, que o rei Carlos VII ganhou a coroa com a ajuda dela e mesmo assim o mal-agradecido não moveu uma palha pra livrar a garota da fogueira, que ela foi condenada pelo Tribunal da Inquisição e ardeu em praça pública. Qual a graça de contar uma história se eu não posso mexer no final?
Depois de passar os olhos na colagem da Danyelle, cortei uns pedaços repetidos e tentei concluir o trabalho. Abri a apostila de História, à procura de alguma gravura que me servisse de inspiração, mas só encontrei o rosto de uma camponesa no início da adolescência. E o que eu queria era uma imagem dos últimos momentos de Joana, quando ela sente as labaredas subindo pela túnica e olha para o céu, como se repetisse as palavras de Jesus: "Deus, ó Deus, por que me abandonaste?".
Pensei em pedir um livro a minha mãe, mas nesse instante tocou o sininho de tubos dourados de metal que ficavam pendurados na porta da sala e sempre faziam tlim tlim quando alguém entrava ou saía de casa. O dono da loja de decoração garantiu que o som produzido pelos tubos tinha o poder de dissipar as energias negativas do ambiente e trazer uma sensação de harmonia e felicidade que contagiaria todos os membros da família. Só que aqui em casa não deu resultado. Seria defeito de fabricação? No início, o tilintar parecia agradável: cada vez que a abria a porta, minha mãe respirava fundo e sentia a felicidade entrando pelos ouvidos. Mas em poucas semanas ela começou a achar aquele barulho monótono e irritante.
A última vez que o sininho tocou foi hoje à tarde, quando meu irmão entrou em casa reclamando do machucado da testa, ameaçando arrancaro esparadrapo e enfiar a unha nos pontos pra se livrar da coceira. Os tubos fizeram tlim tlim e aos poucos foram se calando. Mas em seguida meu pai empurrou a porta e acionou outra vez a melodía oriental que deveria ser fonte de relaxamento e bem-estar. Enquanto ele tentava convencer o Xandi a não coçar o machucado, minha mãe marchou decidida até a porta e arrancou os tubos com puxão ocidental.
Meu pai balançou a cabeça e perguntou qual o motivo fo stress. Ela forçou um sorriso trêmulo e explodiu: "Quem, eu? Estressada? Só porqur você levou o Xandi pro hospital e não se deu ao trabalho de me avisar se o meu filho estava vivo ou morto? Impressão sua, eu estou calmíssima".
Xandi me olhou desanimado, como se esperasse da irmã mais velha uma atitude, qualquer uma, pra evitar uma nova e sangrenta batalha naquela guerra dos cem anos.
Segundo a minha manicure vidente, possuo poderes pra realizar o que quiser, até salvar o casamento dos meus pais. Resta saber de que jeito. Bem que tentei mudar de assunto, contando que tinha de fazer um trabalho sobre Joana d'Arc e precisava de um livro que mostrasse a cena da fogueira. Mas a família estava contaminada pela surdez da vô Nina. Meu pai disse a minha mãe que parasse de fazer drama: o garoto tinha levado três pontinhos na testa e do hospital seguiu para a escola, onde assistiu às aulas normalmente. Se ela estava assim tão preocupada, por que não telefonou? Minha mãe respondeu que tinha ligado, sim, várias vezes, de tanto bater nas teclas até quebrou uma unha. O celular não respondia, e o telefone do consultório dava ocupado. Só descobriu o paradeiro do Xandi depois de falar com a diretoria da escola.
Foi perda de tempo meu pai explicar pela trocentésima vez que desligava o celular pra atender os clientes. A essa altura, os dois falavam ao mesmo tempo, mas deu pra ouvir a minha mãe dizer que achava essa história tão estranha... Quem sabe ele não desligava o celular só quanfo atendia as clientes?
As: artigo definido feminino plural, principalmente feminino, no qual cabem todas as mulheres que passam diariamente pelo consultório do meu pai - incluindo a secretária. Ele se ofendeu com a ironia e saiu andando em direção ao quarto. Xandi e eu o seguimos e ficamos na porta, de mãos dadas, vendo meu pai abrir o armário e jogar algumas roupas dentro de uma bolsa.
Quando terminou de fechar o zíper, ele sentou na cama e abriu os braços. Botou meu irmão numa perna e eu na outra, como nos tempos que costumava brincar com a gente de cavalinho, e disse que iria se afastar por uns dias: "Sua mãe e eu estamos passando por um momento muito difícil e precisamos de um tempo".
Acho que ela estava no corredor, ouvindo a conversa atrás da porta, porque de repente entrou no quarto e falou entre dentes, quase sem abrir a boca: "Pense bem no que vai fazer, Nélson. Se você sair por aquela porta...". E deixou a ameaça no ar.
As reticências não intimidaram meu pai. Ele saiu fo quarto com a bolsa no ombro e meu irmão pendurado numa perna. Eu daria tudo pra agarrar a outra perna, mas não suportava prolongar aquela cena, então tratei de botar o Xandi no colo.
De olho na unha quebrada, minha mãe sofria em silêncio. Só perdeu a serenidade quando meu pai entrou no elevador. Nesse momento ela correu até a cozinha, pegou uma caixa de fósforos e voltou chorando para a sala. Depois de três ou quatro tentativas, finalmente conseguiu acender um palito e ergueu a chama lentamente, dando a impressão de que iria tocar fogo nos cabelos, ou nas cortinas, ou talvez nos livros da estante. Xandi também imaginou o pior e perguntou o que é que ela estava fazendo.
Minha mãe respondeu que a vida é assim: em certas ocasiões, a única saída é... rezar. Virou-se para a mesinha de centro e acendeu uma vela diante da imagem de Santa Joana d'Arc.

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