Cinderela da...6

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   Sexta-feira chegou de repente e me pegou desprevenida. Eu estava completamente indecisa, sem saber se usava o meu tubinho preto acompanhado do colar de pérolas da minha mãe, ou se adotava um estilo mais Light, tipo calça jeans  com blusa justa e um pingente esmagado no decote. Voltei da escola remoendo essa dúvida e, só  de zoeira, pedi a opinião de seu Esteves: "Ô que é que o senhor acha, tubinho ou jeans?". Ele ficou me olhando, arregalado, como se eu estivesse falando outra língua, coçou a cabeça com a unha do mindinho e finalmente gemeu: "Hein?".

   Enquanto esperava o elevador, vi o porteiro se levantar em câmera  lenta e abrir a gaveta da mesa. Tirou lá  de dentro um pequeno envelope em branco e me entregou.

   Minha caixa de e-mails está transbordando de bytes, mas acho que nunca tinha recebido uma carta de papel. Será  que era mesmo pra mim? Seus Esteves confirmou com a cabeça. Examinando a surpresa contra a lâmpada do hall, não consegui enxergar o conteúdo. Então, rasguei a borda do envelope e deparei com um bilhete de três linhas, empilhadas como versos de haicai, esses pequenos poemas orientais que dizem o máximo com o mínimo:

 Então, rasguei a borda do envelope e deparei com um bilhete de três linhas, empilhadas como versos de haicai, esses pequenos poemas orientais que dizem o máximo com o mínimo:

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Não havia assinatura nem seria preciso: a letra era a mesma dos outros bilhetes. De acordo com a professora Clarice, poesia não é receita de bolo nem manual de instrução, portanto não pode ser compreendida com o raciocínio lógico. Tentando ler as entrelinhas, concluí que o Guto estava me convidando não apenas pra dançar, mas também pra namorar. É por isso que, no último verso, ele diz que a nossa amizade era temporária: a locução "por enquanto" aparece em destaque, entre vírgulas que brilham como anúncio de neon em noite de chuva!

   Queria descobrir se foi o próprio Guto quem tinha trazido a carta, mas seu Esteves não se lembrava direito e só soube dizer que o garoto não era alto nem baixo nem gordo nem magro nem moreno nem louro. Fiquei impressionada com tamanha capacidade de observação. Por que é  que o porteiro não se lançava na carreira de detetive?

   Dentro do elevador, beijei a carta e fiquei repetindo os três versos. Não via a hora de recitar a novidade pra vó Nina, mas perdi a fala quando ela abriu a porta e me perguntou: "Que tal?".

   Deixei cair a mochila e fiquei me abanando com o envelope. A novidade da minha avó era muito maior que a minha: um piercing, em forma de espiral, pendurado na sobrancelha! Como será que tinha conseguido convencer o homem das cavernas? Vó Nina me disse, com um sorriso esperto, que havia outras cavernas na cidade. Estava pensando em espetar mais uma jóia, no nariz ou talvez no umbigo, o que é que eu achava da idéia?

   Apoiada! Podia ser apenas impressão, mas ela realmente parecia mais nova com aquele piercing na sobrancelha. Vó Nina agradeceu o elogio e só então notou o envelope: "Não me diga que você recebeu mais um bilhete anônimo?". Mostrei a ela os versos de amor e aproveitei a ocasião para reforçar o convite: se quisesse conhecer o meu Castro Alves, era só me acompanhar à festa dos pais da Leninha.

   Pensei que iria receber um não maciço, mas vó Nina mudou de assunto e me disse que também tinha um bilhete pra me mostrar.

Bilhete?

   Ela foi até a mesinha do telefone e me pediu uma explicação para o que estava escrito no bloco de recados: "A cliente das quatro vai ligar para o salão da Salete e avisar que apareceu outro compromisso".

   Ah, meu Deus, como fui me esquecer de jogar aquela folha no lixo?

   Eu poderia dizer que sonhava em ser escritora e a frase era parte de um conto, e que qualquer semelhança com fatos ou personagens reias não passava de mera coincidência. Mas não tive coragem de mentir pra vó Nina e confessei que com a mão esquerda eu dava vida às palavras.

   Ao saber que a minha redação tinha salvado Joana d'Arc da fogueira, vó Nina me perguntou até onde ia o meu poder: se eu era capaz de mexer no passado, então, pela sua lógica  de avó coruja, eu teria ainda mais facilidade pra consertar o presente. Por que não escrever um texto pra acabar com a fome, as doenças, a guerra, o terrorismo, a poluição, o desemprego? Falei que não era nenhuma deusa e, pra ser sincera, nunca me julguei tão poderosa a ponto de resolver as misérias do mundo. Eu já me dava por satisfeita em ajudar as pessoas à minha volta - arranjando uma vaga no salão de beleza ou salvando o casamento dos meus pais.

   Minha avó se surpreendeu com o fato de que, com uma única frase, eu tenha conseguido reconciliar aqueles dois cabeças-duras. Depois de servir o meu prato, ela sentou na minha frente e passou o resto do almoço em silêncio. Só voltou abrir a boca quando larguei os talheres: "Ô que mais, Joana?". Fiz uma careta pra mostrar que não aguentava nem uma ervilha. Mas vó Nina não estava falando do almoço. O que queria saber era se eu tinha inventado outra frase, redação ou poema, enfim, qualquer texto em que ela aparecesse como personagem.

   Desde a bendita manhã em que pulou da cama, minha avó nunca mais tomou um comprimido - nem teve a curiosidade de abrir a agenda onde eram controlados os horários dos remédios. Fui ao quarto dela pra buscar a tal agenda e mostrei a página com a anotação: "Vó Nina vai ficar curada".

   A emoção desafinou a sua voz e provocou uma mistura de gagueira com soluço. Ela me sufocou de beijos e abraços e disse que eu merecia o prêmio Nobel. Por fim, anunciou que aceitava o meu convite pra ir à festa na casa da Leninha: "Isso é o mínimo que eu posso fazer por você ter me curado".

PoderosaOnde histórias criam vida. Descubra agora