Complexo de noiva... 7

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   Deitada de barriga pra cima,  vó Nina tinha os olhos fixos em uma largatixa no teto. As duas pareciam vidradas como no jogo do sério: quem risse por último seria a vencedora. Percebi que a disputa poderia durar a noite toda e provavelmente terminaria empatada - a não ser que a largatixa despencasse ou a minha vó caísse no sono.

   A gaveta do criado-mudo guarda uma coleção de comprimidos de dar água na boca em qualquer hipocondríaco. E sobre o tampo de mármore fica a agenda onde são  anotados os horários  e as doses dos remédios,  bem como o telefone da farmácia, do hospital e do médico. Foi nessa agenda que escrevi,  bem no canto da página, com uma letrinha miúda que ninguém seria capaz de ler:

 Foi nessa agenda que escrevi,  bem no canto da página, com uma letrinha miúda que ninguém seria capaz de ler:

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   Logo depois da exclamação, a bichinha desabou no assoalho e saiu correndo pra baixo do armário. Vó Nina não tinha mais com quem brincar e, como eu previa, tirou os olhos do teto. Mas nem por isso me deu atenção. Virou-se de lado com dificuldade e começou a praticar o seu esporte favorito: descascar a tinta da parede com as unhas.

   Essa mania veio dos tempos do internato. Os pais da minha avó moravam na fazenda e, na falta de uma boa escola nas cidadezinhas da redondeza, eram obrigados a mandar os filhos para os colégios internos da capital. Vó Nina foi pra um desses muito cedo, não sei se tinha sete ou oito anos. No início, ficava o dia todo na cama, chorando e vomitando pra tentar convencer as freiras de que não se adaptava àquele regime militar e precisava voltar pra casa: na cabeça dela, era melhor ser uma analfabeta feliz que morrer de tristeza no meio dos livros. Mas não  adiantou. As freiras achavam que os enjôos e desmaios não passavam de desculpa pra escapar dos estudos e obrigavam a menina a participar de todas as atividades normalmente: assistir às  aulas, frequentar as missas e até  brincar de roda no recreio.

   O ideal seria escrever para os pais, contando que estava adoecendo de saudade e pedindo pelo amor de Deus  pra fugir daquela prisão, onde até  as brincadeiras eram um castigo. Mas nessa época vó Nina só conhecia as vogais e umas poucas consoantes pra pedir um socorro decente. Ditar a carta a colegas mais adiantadas também não  funcionou: a correspondência das alunas passava pela censura prévia de uma comissão  de freiras antes de ser enviada para o correio ou para o lixo.

   Se os dias no internato eram difíceis, as noites pareciam impossíveis. Nos fundos do colégio, havia uma floresta - e vó  Nina, por azar, dormia ao lado da janela
Ou melhor: não  dormia. De olhos e ouvidos arregalados, passava a madrugada escutando os uivos dos lobisomens, sacos,  mulas-sem-cabeça, boi tatus,  curupiras, e caiporas que infestavam as matas do Brasil e, de acordo com a freira que dava aulas de Folclore, à noite saiam da imaginação popular sugar o sangue fresco das alunas que fingiam estar doentes pra matar aula ou abandonar o internato.

   Sem conseguir pegar no sono, minha avó se encolhia na cama e arranhava a paradeiro do dormitório até  lascar a ponta da unha. O passatempo ajudava a combater a insônia e, aos poucos, foi virando mania.


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